Gerações

Um avô que só serve como enfeite, não é um avô. É uma jarra

Presente de um avô de verdade, segundo o autor, é invariavelmente uma corneta, uma bola de futebol, um tambor e, principalmente, um estilingue

Avô que honra o seu papel é o que ensina ao neto todos os palavrões ouvidos de norte ao sul do país. Ou se preferirem: do Oiapoque ao Chuí.

 

► Admiro o avô que seja capaz de transmitir as mais escandalosas e fundamentais transgressões ao neto, com o meritório propósito de lhe ensinar o insubstituível caminho das pedras nas angustiantes travessias da vida. Exemplo: o avô de verdade chama o neto num canto, abre a caixa de ferramentas e, sem nenhuma cerimônia, revela-lhe todo o repertório de palavrões listados na última flor do Lácio, inculta e bela (meu deus, tio Noraldo!).

E não apenas isso: nos aniversários do neto, lá está ele com seu invariável presente: uma corneta, uma bola de futebol, um tambor e, principalmente, um estilingue.

Essa é sua precípua (de novo, tio Noraldo!) missão: empenhar-se em desmontar por todos os meios, os numerosos despropósitos que os pais, sobretudo as mães, querem impor ao filho, com o lamentável objetivo de torná-lo um amestrado cidadão. Politicamente correto e ecologicamente sustentável.

Mas um avô apenas cumprirá seu intransferível papel aqui nesse vale de lágrimas (que é isso, tio?) quando transfere ao descendente, a mesma paixão que ele devota ao seu time de futebol.

E nesse caso não é só torcer, mas ensiná-lo a vestir a camisa do clube em todos os dias de jogos. E seguir vestido durante toda a semana seguinte, em casos de vitória. Deve incentivá-lo a insultar os adversários e, sempre que possível, a assoar o nariz em camisas de times inimigos. Ou usá-las para propósitos ainda piores.

O neto deve aprender que aquele gramado com quase cem metros de comprimento não é terreno apropriado para qualquer forma de delicadeza. Seu time está vencendo de cinco? Esbraveja e exija mais sangue e suor, até que metam outras cinco bolas na rede. Não basta vencer, é preciso humilhar.

O neto também deve acompanhar tudo o que ocorre no clube do coração, desde decorar a completa relação das vitórias no campeonato do inesquecível ano de 1910 e a cantar com euforia cada verso do seu glorioso hino. O primeiro noticiário esportivo das emissoras de rádio é às seis da manhã – o Tiro de Meta, da Rádio Itatiaia. Não há razão para que algum deles seja esquecido.

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Mas não basta saber de tudo. O neto deve carregar na sua rica biografia, a data em que o avô o levou ao clube para acompanhar, numa inesquecível manhã, o invejado ofício das empregadas domésticas no heroico trabalho de lavar aquele manto sagrado.

Espero ser alcançado por essa sorte com o meu querido neto Miguel, hoje com cinco anos. Será uma forma de me redimir (você ainda está aí, tio Heraldo?) do grande fracasso com minha filha Helena, que já de posse do manto alvinegro, queria conhecer o estádio Independência.

Levar o neto ao estádio – esse é o primeiro passo para a conquista de um jovem torcedor. Mas é preciso o cuidado de escolher o domingo no qual se mostram imensas as possibilidades de vitória do seu clube. Haverá sempre um dia em que o glorioso terá pela frente o Madureira, do Rio, ou o Estrela de Cachoeiro de Itapemirim. Esse é o dia!

Nem todos conhecem a mística do Independência, temido campo de futebol, aqui em Belo Horizonte onde foram tão numerosas e retumbantes as vitória alcançadas pelo Galo que se forjou uma indelével (chega, pô!) mística: “Caiu no Horto, tá morto!”. Horto, no caso é bairro onde está localizado o glorioso templo.

Como o Independência se revelou acanhado para acolher nossa gigantesca horda, qualquer que fosse a partida, sugeri a Helena que fossemos conhecê-lo num jogo do América, simpático e sofrido time da segunda divisão, conhecido pela sua minúscula torcida. Seus torcedores cabem folgadamente numa Kombi e desde que a produção do veículo foi descontinuada pela Volks, eles seguem alegremente numa van.

É sempre repetido um divertido diálogo, pelo telefone, de um torcedor do América com um bilheteiro daquele estádio.

– “A que horas começa a partida?” – perguntou.

– “Quando o senhor pode chegar?” – respondeu a aflita voz do outro lado.

Era uma deliciosa tarde de setembro, especial para a prática do esporte bretão (tenha dó, cara!). Já me referi, anteriormente, à numerosa torcida do América. Como time visitante era o Criciúma, de Santa Catarina, o torcedor inimigo estava a quase dois mil quilômetros de distância. Os garçons nos atendiam nas cadeiras. Não precisávamos sequer nos levantar.

O jogo começou e o América jogou de forma absolutamente deslumbrante como nunca o fez nos seus 103 anos de profícua (agora chega, tio Heraldo!). O placar de três a zero se tornou pequeno e não refletiu a magnífica atuação do time, liderado por Rodriguinho, um jovem craque que poucos dias depois foi vendido ao São Paulo.

Helena se retirou encantada do estádio. Disse, já na avenida e comendo umas pipocas, que jamais vira um time jogar com tanto brilho, nem mesmo o Barcelona. Claro, eu me apavorei e me preparei para o pior. Lembrei a ela que decisões precipitadas nem sempre resultam em boas coisas. E que ela deveria assistir a um jogo do Galo antes de definir seu destino esportivo.

Helena concordou e dez dias depois, numa noite de quarta feira, estávamos a caminho do mesmo Independência para ver um jogo do Galo contra o Bahia. Como ocorre em todas as suas partidas do clube, o trânsito era enlouquecedor. Estacionamos numa área perigosíssima. Escura e enlameada, pois chovia a cântaros (ô, ô, ô, tio Heraldo é um terror!). Havia uma subida íngreme, a rua Pitangui, para se chegar ao estádio. Bilheterias repletas e os torcedores, como sempre, desconheciam as filas. Como também urinavam nas paredes e lá dentro não respeitavam lugares marcados, trepavam nas cadeiras e assistiam ao jogo em pé.

Durante toda a partida ela, felizmente, quase não viu o jogo, com a multidão lhe atrapalhando a visão. Mas ouviu os palavrões ensinados pelos avôs aos seus netos. E o que é pior: o Galo levou um passeio e o jogo terminou empatado. Claro que houve brigas entre as furiosas facções de torcedores. Resumo da ópera para encurtar a conversa: a van do América leva mais uma torcedora aos jogos da Segundona.

 

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