Gerações

Carlinhos Brown: ‘fui criado pelos meus avós’

Segundo o entrevistado, a grande disrupção é construir coisas ao lado das existentes. “A gente não precisa destruir para crescer...”

Entrevista com o compositor, arranjador e ativista cultural

Ancestralidade, memória oral, música, preservação das tradições, superação e sobrevivência. Esses são os ingredientes da fala de um artista talentoso e importante embaixador da cultura negra brasileira e do combate ao preconceito racial. Brown

Ele conversou com o portal avosidade após sua palestra no seminário Magnext, promovido pelo Grupo Mongeral Aegon, no Rio de Janeiro.

Nascido Antônio Carlos Santos de Freitas e conhecido pelo nome artístico de Carlinhos Brown, o artista tem uma trajetória inspiradora. A infância foi muito pobre, no bairro do Candeal, em Salvador (BA). Primogênito de uma família de 11 filhos, dos quais 9 sobreviveram. Nasceu quando sua mãe tinha menos de 14 anos.

O ambiente onde passou os primeiros anos da sua vida era ao mesmo tempo rural e urbano. O Candeal, na época do seu nascimento e infância, era uma espécie de fazenda, sem nenhuma comodidade urbana dentro da cidade de Salvador.

A proximidade com seus avós foi fundamental para ele nesses primeiros anos. A memória oral e ancestralidade estão muito presentes na sua vida, e as chances de escolaridade quase não existiram para Brown.

Música e religiosidade Brown

A curiosidade, a música e a vontade de conhecer coisas novas moldaram sua personalidade, fazendo com que, como ele diz, não virasse estatística, morrendo antes dos 21 anos, como muitos jovens negros com a sua condição social.

Sua música encantou todo país e o mundo, e também o aproximou das questões sociais. Brown criou vários projetos, programas e grupos musicais que modificaram a vida de crianças e jovens carentes de Salvador e continuam ativos.

Além de proporcionar formação artística, essas iniciativas preparam os alunos para enfrentar o preconceito e a discriminação.

Brown sempre usa, nos shows e na vida cotidiana, uma saudação Ajayô, originária da religião de seus ancestrais paternos, o Candomblé (e mãe, de família pentecostal). É a saudação ao orixá Oxalá (o criador de todos os seres humanos e um símbolo de paz).

A seguir, os principais trechos da entrevista Carlinhos Brown.

 

Menino criado com vó

Geralmente essa pessoa é doce, eu também fui criado pelos avós

“Menino criado com vó. Geralmente essa pessoa é doce. Eu também fui criado pelos avós e sou essa pessoa doce, essa pessoa está muito mais atenta ao meio ou ao ambiente em que vive. Só que hoje tem algo diferente. Não podemos considerar que os avós são babás dos nossos filhos. Ele tem que curtir o momento dele de avô, não tem mais responsabilidade paterna. Encontro em vários lugares os avós fazendo o papel de babá, os avós fazendo o papel do pai e da mãe que não seria este, o papel de carinho. Vovô e vovó é carinho sem compromisso. Não se pode dar o peso do compromisso. Eu acredito que eles podem ensinar muito, mas a partir que nós tenhamos essa valorização.”

“Eu não posso ir para festa, tenho que cuidar do meu filho, não é responsabilidade do avô, da avó. É sua vez de aprender, e quando a gente deixa isso, abre não disso. Eu falei do meu tataravô foi quando… Eu estou organizando com Hollywood fazer um seriado da minha vida. Dois capítulos, essa coisa da Netflix, e eu quero muito que comece com Augusto Teixeira de Freitas. Como é que meu tataravô escreveu o código cível do Brasil, um dos fundadores da OAB, um dos maiores advogado do tempo… Como essas famílias perdem a cadência e vão para a linha da pobreza. Eu nasci abaixo da linha da pobreza, sem nenhuma uma tristeza porque isso ficou para trás. Psicólogo, te peço desculpas, não vou lhe abusar.”

 

Família

Nascido em um lugar sem água e sem luz, família foi extremamente importante

“A relação com meus avós foi perfeita. No momento que minha mãe resolve me parir com quase 14 anos de idade, isso é um choque, para um avô pentecostal e para uma avó que também era dessa família, e sobretudo minha mãe casando com um homem oriundo dos terreiros, que nesse caso é o meu pai. Eles foram de extremo carinho e tiveram uma compreensão para um momento tão difícil, sobretudo no Nordeste do Brasil. Nascido em um lugar, sem água, sem luz, já sabe como era, um estado rural-urbano, a Bahia naquele momento. Meus avós foram extremamente importantes para dar essa densidade a uma família que cresceria em um total de 11 filhos, na qual vingaram 9.”

“Eu sou o irmão mais velho de todo mundo. Então, minha avó foi muito responsável. Sabe quando eu comi um pão pela primeira vez? Não tem nenhuma tristeza nisso era o momento social da época. Eu comi o pão aos 12 anos. A gente não comia semolina, a gente comia inhame, batata, banana, essas coisas que eram plantadas ali. Jaca, muita fruta naquela fazenda e de repente, minha avó quando me trouxe o pão, ela resolveu aprender a fazer pão, ela fazia um beiju maravilhoso. Eu recebi muito carinho deles dois, em especial do meu avô, meu avô fez uma figura de pai, muito importante na minha vida, Bertolino, descendente de italianos.”

 

Longevidade

Para se manter vivo você precisa ter alguns cuidados, o mundo mudou

“O segredo da longevidade é se manter vivo… (risos). Para se manter vivo você precisa ter alguns cuidados. Nós estamos falando que é necessário não atravessar o sinal vermelho. Estamos falando que filhos e filhas devem prestar mais atenção ao discurso do pai nessa saidinha da noite. Precisamos ver que o mundo mudou e toda essa questão não puramente econômica, mas esse desejo ambicioso de ter o que o outro construiu. Tem violência no mundo, isso é notório, e nós precisamos evitá-la e se assegurar de onde e com quem andar.”

 

Arte e política

Arte é estética e estética é a verdadeira política

“Eu costumo não falar de política partidária, eu nem me manifestei em relação ao presidente, porque está tendo a oportunidade dele. Todo mundo tem que ter oportunidade ter provar a que veio. Ele tem quatro anos para provar isso. Mas a arte, ela está vindo, sei lá, desde que nasceu Roma e ela tem tido um papel importante. A arte é a estética, a estética é a verdadeira política. E talvez, ela seja barrada nesse sentido, ela vem de um espaço da alma da pessoa que é um espaço etéreo, que é algo que acontece por inspiração ou por espiritualidade.”

“Eu acho que a arte está segura por causa da ancestralidade, todo mundo pensa que a ancestralidade que a cultura negra fala sobre pertence a ela, como se todo mundo não tivesse papai, vovô, vovó. Cultura é cultuar o que o passado nos deu a título de base. E o que mais nós estamos lançando mão, não estamos ligando a base à oralidade que a cultura nos deu, porque a gente está acreditando em uma formação diária de comunicação é que internet.”

 

Conteúdo e comunicação

Internet só será conteúdo quando armazenar coisas edificantes

“Internet é comunicação, ainda será conteúdo, quando realmente armazenar coisas que sejam mais edificantes para o ser humano. Quando tiver traços esquizoides na internet, no fato de depreciar o outro, de achar que não… a insegurança de quem está do outro lado, de não saber incentivar. A internet será uma mera criança, uma página em branco. É uma comunicação importante? É. Mas, somos nós que precisamos ter esse conhecimento e isso nós não podemos dizer que é cultura. Será tido presente primitivo, já que tivemos um passado primitivo. Ainda é um presente primitivo, no que se diz respeito a mulher, no que se diz respeito a criança, ou se mata por nada, onde se mata por uma televisão de mão, onde o homem perdeu a humildade de dizer ‘eu estou com fome’ e rouba.”

 

Desejo de alegria

Sou uma pessoa falante, meu desejo de falar é meu desejo de alegria

“Sabe por que eu dou risada e sou essa pessoa alegre? Porque eu passei dos 21 anos. Estava na estatística da morte e estou com 57. Eu tenho que sorrir e agradecer muito, tenho que ter muita gratidão. Pelos mestres e por tantas outras coisas. Por isso sou falante. Meu desejo de falar é meu desejo de alegria.”

(*) Foto de Luciana Whitaker

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Elisabete Junqueira

Publicitária e jornalista, fundadora e editora do portal avosidade, avó de Mateus, Sofia, Rafael, Natalia, Andrew, Thomas e Cecilia Marie

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