Lembranças da primeira avó
Chamava-se Rosalina (quer melhor nome para uma avó?), a primeira nas lembranças. Chegou de Portugal em 1905, começo do século XX, com cinco anos de idade. Tinha vindo de vapor, que é como elas chamavam aqueles navios antigos que soltavam muita fumaça e, quando apitavam no porto de Santos, a gente ouvia a quilômetros.
Nunca voltou a Portugal, mais precisamente para São Pedro da Raimunda, Freguesia de Lustosa, Concelho da Lousada – adoro esses nomes portugueses.
Apesar de viver todos esses anos no Brasil, sempre parecia que tinha acabado de desembarcar. Tanto pelo seu sotaque como pelas palavras estranhas – “bem cá, toma, oh, menino” – que ela desfilava nos seus raros momentos de raiva.
Nós, os meninos, éramos uma minoria numa família de mais de 15 netas. E só nós tínhamos privilégio de ouvir as piadas do Bocage, poeta romântico português, famoso também por suas piadas escatológicas, cheias de palavrões, que minha avó nos contava em particular e ria mais do que nós mesmos.
Era um momento de relaxamento para essa senhora que, com 5 filhos pequenos, perdeu meu avô e o filho mais velho no mesmo ano. Isso em 1935. E a partir daí começou a fazer, na sua velha máquina de costura Singer, que hoje vejo como móvel de decoração, um vestido de noiva a cada dois dias, conforme me testemunharam antigas amigas dela, há muitos anos, quando todas ainda estavam vivas.
Meu pai, único homem da família, com 10 anos na época, começou a trabalhar fazendo de tudo um pouco, sendo entregador, ajudante de restaurante e garçom, para ajudar na economia familiar.
Estamos nos anos 1930 e 1940 no bairro da Vila Carioca, em São Paulo, e, quando chovia muito, o Rio Tamanduateí, grande fonte de lazer para a meninada, transbordava e inundava tudo.
A família da minha avó sobrevivia com os vestidos de noiva, os trabalhos dos filhos pequenos e com os pães caseiros dos hungareses – assim a vó Rosalina chamava os imigrantes húngaros e outros eslavos que moravam no bairro.
Em troca do favor de meu pai, ainda moleque, trazer encomendas da Rua Silva Bueno, que ficava na parte mais alta do Ipiranga, lá para baixo na Vila Carioca, eles pagavam com grandes pães caseiros cuja receita tinham trazido dos seus países na Europa.
Era uma forma decente e honesta dos “hungareses” ajudarem minha família sem que fosse esmola. Essa foi uma das grandes lições que minha avó me deu: sempre que ajudar alguém, fazer de um modo com que pessoas não se sintam mal ou humilhadas.
Minha avó criou bem os filhos e morreu quando todos já estavam “encaminhados”, como diria ela. Nunca a ouvi reclamar da vida. Morreu com 79 anos, um mês depois de voltar de uma excursão de ônibus do Ceará!
Essa é uma primeira de muitas histórias que eu lembro dela.
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