Trinca de damas
● Histórias de uma neta de muitas avós
►A sorte pode cintilar na vida das pessoas de diferentes formas. Na minha, ela veio por meio de uma trinca de mulheres absolutamente adoráveis. Vou começar este texto dizendo que minha família nunca foi daquelas superconvencionais.
Tenho avós, pais, um monte de irmãos, cachorro, gato, galinha e até jacaré de estimação. Até aí seria fácil confundir com algum take de propaganda de margarina. Mas, quando se olha mais de perto, a história é diferente.
Tenho o sangue quente dos italianos sulistas, salpicado pela dureza dos alemães, com sabedoria crioula e um quê genuinamente português. Miscelânea total (ou brasilidade à flor da pele).
A genética é herança dos antepassados que cruzaram o Atlântico para tentar uma vida melhor por essas bandas.
Do lado alemão, a linhagem da minha vó Cecy (que tem o mesmo nome da protagonista de O Guarani, romance de José de Alencar), mãe do meu pai, há uma ponta de seriedade devidamente contornada pela latinidade que encontraram por aqui.
Minha vó era visionária – usava calças compridas quando a moda obrigava a mulherada a vestir uma “pseudoburca acorpetada”. Dava as suas tragadas para exibir a ousadia do ato e dirigia pelas ruas de Bagé, cidade cravada na fronteira do Brasil com o Uruguai.
Foi com essa impetuosidade que ela se apaixonou por um homem muito mais velho (diga-se: 30 anos à sua frente!). Fez as malas e se mandou para Sampa.
A tiracolo, ela levou a afilhada, Juray, uma mocinha de 13 ou 14 anos que vivia sob a sua tutela desde que dera os primeiros passos.
O nome de raízes indígenas era um dos traços culturais da região, morada de tribos bugres e de quilombos remanescentes. Juray é a minha outra avó – também mãe do meu pai –, mas é aquela que escolheu a gente.
Completando a trinca
A terceira vó, mãe da minha mãe, é uma mulher de traços fortes: linda, ruiva (ainda que falsa, a cabeleira avermelhada lhe deixa com ares de atriz hollywoodiana). Olhos verdes, personalidade rígida, mas com um coração enorme.
Batizada de Maria Amélia, ela escolheu seguir como Wilma (que era como deveria ter sido registrada, se não fosse o pai bater o pé no cartório e mudar os planos na última hora).
Foi com essa trinca que cresci. Vó Cecy era a melhor contadora de histórias do globo. Ainda que os seus hits favoritos fossem enredos de terror, com finais macabros. Não havia noite sem os contos horripilantes.
Como era incrível escutar sobre bolas de fogos perseguindo visitantes nos cemitérios! Talvez essa seja a raiz do meu gosto pelos scripts de suspense…
Confesso que ela tinha uma queda declarada pela neta primogênita – que não era eu! Tudo girava em torno da “Vanessinha”. Os três que sobravam tinham que disputar um lugar no colo da vó Ju. E esse sempre foi – e ainda é – um porto seguro!
Outro colo que vivo atrás é o da vó Wilma. Não existe dor que ela não seja capaz de curar. Acho que tem a ver com a coisa da comida: ela cozinha sem parar, e associo o ato de comer com o do conforto.
Tem uma ligação psicológica neste contexto! É a típica “mamma napolitana” alimentando o seu rebanho.
Foi no colo dela, com o feijão cozendo e as batatas fritando, que passei parte da infância. Ela me ensinou a pedalar, a dar os primeiros pontos de costura, a superar o medo dos trovões e até tentou, em vão, emplacar algumas receitas.
A mais longeva
Faz 20 anos que a vó Cecy nos deixou. Entretanto, ainda temos a vó Juray, que depois de o falecimento do meu pai, há seis anos, resolveu retornar ao Rio Grande do Sul, detalhe que nos faz encarar mais de dois mil quilômetros de estradas para visitá-la.
E fazemos essa jornada com prazer. A cada temporada, ela, que é Ialorixá na Umbanda, nos revela mais alguns segredos sobre a “Casa das Sete Mulheres”, apelido que demos à antiga residência dos Fehlberg (sobrenome da alemãozada), já que as sete filhas se encarregaram de construir narrativas pitorescas.
Vó Ju é uma guardiã desse legado, uma fiel escudeira. Cada vez que a ouço, com sua voz embargada, meio inaudível por conta de seus quase 90 anos – e pela falta de um dos pulmões que ela perdeu para a tuberculose, na década de 1940 –, sei que estou diante de uma muralha.
Sinto um misto de orgulho e de privilégio, que me permitiu aprender que o amor é incondicional, não tem nada a ver com laços de sangue. No fim, nós nunca escolhemos quem vamos amar, apenas amamos.
Serviço
O livro “O Diário de Bia – Memórias de uma Salsichinha”, de Patrícia Favalle, será lançado na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, Vila Madalena, São Paulo), dia 15 de fevereiro de 2017, das 18h30 às 21h00.
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