Alegre tortura
► Fenômeno sociológico interessante está sendo vivenciado pela humanidade: a redução dos índices de natalidade no planeta, concomitante com o aumento dos anos de vida das pessoas. É uma equação sem incógnitas, em que a resultante é o maior número de avós com a redução da quantidade de netos.
Ah! Sou de um tempo em que avós eram seres raros. As pessoas morriam na faixa dos 50 anos de idade. Hoje ganhamos uns 30 anos extras da ciência. Atualmente as fotos de famílias têm mais avós que nos tempos de antanho.
Eu mesmo, quando tomei conhecimento da minha única avó pelo lado materna, dona Cotinha, senhora de pose hierática e sempre na poltrona de ferro na varanda da nossa casa, a pobre anciã já estava caduca ( Alzheimer ) e gostava de bater com a muleta nos meus amiguinhos. Ela não tinha força para machucar ninguém, mas eu me divertia com o seu olhar severo de ex-professora a assustar a meninada. Carinho dela, nenhum.
Mas todo fato social tem lá as suas características positivas e negativas. No Brasil dos anos 50/60 as famílias eram imensas. Pais, os raros avós, tios e filhos viviam na mesma casa. Os problemas eram comuns a todos.
A família contemporânea, entretanto é nuclear: pais e filhos. Decorrência do estilo corrido da vida moderna, em que todos estão sempre cheios de afazeres. Até as crianças têm agenda cheia: colégio, cursos de línguas, natação, judô. A infância é outra e as brincadeiras despreocupadas foram substituídas por atividades preparatórias para a vida adulta.
Os velhos antigamente lidavam e cuidavam das crianças. Atualmente moram em suas próprias casas e têm horários e dias determinados para conviver com os netos. As mães modernas oprimem os avós em uma doce e sofrida tortura, ao impor limites às visitas “avóternas”.
Como bem lembrou a escritora Rachel de Queiroz*:
“A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. (…) Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas”.
E prossegue:
“E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha.(…).Aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é “devolvido”.
Faria um único e pequeno adendo ao artigo da Rachel: o doutor lhe põe nos braços um menino ou uma menina. Tanto faz o gênero, o fato é que netos e netas chegam para compensar os achaques da terceira idade, preenchem uma lacuna, geram um enlevo até então desconhecido por quem achava que a vida não teria mais nada de novidade a nos apresentar, tão vazios e convencidos estávamos de nossas experiências de vida.
*A arte de ser avó, 1964
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