Gerações

Benedicta, a incrível história de uma ausência

A foto da avó Benedicta sobre a porta de entrada de casa dava a ela o lugar de guardiã, a imagem forte da protetora e protagonista

Aos avós que sempre estiveram sem nunca terem estado

Sua foto sobre a porta de entrada de nossa casa dava a ela o lugar de guardiã, de protetora, mesmo que ela tenha morrido mais de uma década antes do meu nascimento. Benedicta.

Talvez esse seja o tipo de milagre que os avós são capazes de fazer: ocupar espaços de honra em nossas vidas ao se manterem vivos em nossos corações.

Tenho a memória clara daquela imagem forte. Era poderosa. Sua história era cheia de mistérios. Meu pai, filho único e sem qualquer parente próximo, ficou órfão aos 16 anos e manteve verdadeira reverência pela mãe.

Quando perguntávamos por ela a resposta era sempre a mesma:

“sua avó se chamava Benedicta, era uma mulher forte, austera, de pouca conversa, mas cheia de princípios”

Criou meu pai com carinho, mas na linha dura. Responsabilidade e trabalho sempre.

Do meu avô, nada sabíamos. Quando perguntávamos, a resposta era curta e dura: “não quero falar dessa figura”. E o assunto morria ali.

A madrinha do meu pai, já idosa naquela época, era a nossa única conexão com um passado hermético. Foi ela quem contou para a minha mãe, em confidência, que minha avó era mãe solteira e que havia fugido das terras do sul de Minas para criar seu filho sozinha em São Paulo.

Essa decisão tão difícil e corajosa a fez viver longe de toda a família e criar seu filho sem pai, tios, primos ou qualquer respaldo social.

O avô Luiz Benedicta

Até hoje, se perguntado sobre sua infância, meu pai se nega a falar. Dá a pista de que foram tempos de muita dor e que não vale a pena a lembrança.

Hoje consigo entender melhor o que ele quer dizer ao imaginar como pode ter sido a vida de uma mulher negra, pobre e mãe solteira no início da década de 1930, no centro de São Paulo.

Um tempo tão distante do que hoje consideramos ainda uma batalha pela superação de preconceitos e pela inclusão. Vida dura.

A madrinha contou que meu avô se chamava Luiz, morava em uma cidade do Norte de São Paulo, havia se casado e tinha duas filhas.

Neste espaço de avosidade compartilho que aprendi a conhecer a minha avó pelos olhos, comportamentos e histórias do meu pai. Como quando ele foi atropelado por uma bicicleta, ainda menino, ao entregar as marmitas que ela preparava e vendia.

Mais tarde, aos 11 anos, tendo aprendido datilografia, meu pai-menino se ofereceu para trabalhar em uma loja de materiais de construção. Quando fazia uma entrega em uma área distante, no alto da Lapa, soube que o patrão tinha um terreno com uma casinha à venda e se ofereceu para comprar.

Como assim, com 11 anos querendo comprar uma casa? Pois é, ele convenceu a mãe a oferecer sua máquina de costura – que ela agora usava para costurar fardas do exército – como entrada, e ele trabalhou alguns anos como pagamento.

A casinha ele alugou para ajudar a pagar as prestações e construiu ao lado um cômodo em madeira onde viveu com a mãe até o dia em que, ao chegar em casa, soube que ela, então com 39 anos, tinha sido levada para o Hospital das Clínicas.

A avó se foi Benedicta

Ele tinha 16 anos, era muito forte e havia encontrado no boxe um esporte para praticar e um espaço de convivência com amigos. Minha avó não gostava que ele lutasse, mas ele insistia.

Na noite em que ela adoeceu, ele tinha uma luta marcada, mas foi correndo para o hospital. Nos contou certa vez que, ao chegar lá, encontrou a mãe já bastante fraca – ela tinha sido afetada pelo mal de Chagas, pouco conhecido até então.

Disse que ficaria com ela, mas recebeu como resposta: “você não vai ficar aqui porque filho meu não falta a compromisso. Se você marcou, vá”. “Mas, mãe…”, choramingou ele, ao que ela respondeu:

“não chore, meu filho, porque seu sofrimento começa agora”

Ele lutou, ganhou e no dia seguinte seguiu sozinho e sob forte chuva para o cemitério onde se separariam para sempre. No enterro, apenas ele e ela.

Penso na tristeza que se abateu sobre aquele cômodo e a desolação daquele jovem, e quanto era forte o caráter de guerreiro que o levou adiante.

Tornou-se um cuteleiro de muito talento. Aos 20 e poucos anos afiava bisturis para cirurgiões importantes que mandavam seus instrumentos de todo o país. Era um artista em seu ofício.

Naquele mesmo terreno, construiu com muito pouca ajuda uma edificação com três andares. Subia uma avenida íngreme carregando na bicicleta sacos de cimento e dormia na obra.

Foi sobre a porta dessa casa que ele manteve o relicário de minha avó por tantas décadas.

Pai e mãe, quatro filhos Benedicta

Aos 21 anos, meu pai se encantou por minha mãe e pela família de imigrantes italianos com 13 filhos. Ele tinha 25 e ela 24 quando se casaram.

Ele fez sua última luta de boxe profissional para se casar. Perdeu por pontos, mas ganhou um bom dinheiro que garantiu as últimas compras do enxoval, a viagem de núpcias para Poços de Caldas e presentes para os sogros.

Começava ali a sua família, que hoje floresceu: Tania, a filha mais velha, eu, a Telma e o Junior, que resultou do desejo e insistência de minha mãe para dar ao meu pai um filho homem, que carregasse seu nome.

A árvore deu ainda, como frutos, sete netos, duas bisnetas, além de um bisneto que agora está a caminho.

Lembro-me com muita clareza dos dias de Finados em que íamos todos ao cemitério de Osasco. Nas paredes onde ficava um mosaico com as caixas e restos mortais, uma placa de cimento com a inscrição “Saudade de seu filho, Josmar” era o ponto de encontro.

Benedicta

Meu pai ficava ali sozinho por muito tempo e em silêncio. Nós esperávamos com paciência. Minha avó estava ali, no espaço entre a finitude daquele muro frio e memórias e sentimentos sem fim daquele homem jovem, forte e que às vezes parecia tão triste e solitário. A devoção dele pela mãe sempre foi imensa e nos contagiou.

Os anos se passaram, meu pai deixou a oficina para servir à Polícia Civil, onde se aposentou. A vida mudou muito, o endereço também, mas ela permaneceu sempre presente nos momentos mais felizes e também nos mais difíceis. Ela sempre esteve lá, sem nunca ter estado.

Reencontro e novo distanciamento Benedicta

No início dos anos 70, um grande amigo de meu pai resolveu procurar por meu avô e conseguiu. Ele era conhecido como Luizinho do Violão, um homem que gostava de música e futebol.

Pego de surpresa com a notícia do filho que nunca conhecera e que já era homem feito, contou para uma das filhas, Carmem, que ela tinha um meio-irmão e que um intermediário estava organizando um encontro entre eles.

Eu era adolescente quando, numa noite, meu pai chegou alterado.

Sentou-se sozinho na porta de casa e chorou por muito tempo. Acabara de saber da morte do pai.

Mesmo dizendo “não gostar dessa figura”, ele acompanhava a vida do pai à distância. A noite de choro selava um encontro que não poderia mais acontecer.

E mais um reencontro Benedicta

Foi em 1998 que o destino nos ofereceu uma boa surpresa: Carmem, filha do meu avô, procurava pelo meio-irmão há anos, e, por um capricho do destino, encontrou uma pista.

Um amigo comum, ao olhar para ela e ouvir a história do irmão perdido, reconheceu o quanto ela e meu pai eram parecidos e matou a charada.

Ela nos procurou e, desde então, meu pai ganhou uma irmã, e eu e meus irmãos, uma tia.

Em 2001, com 39 anos, tive um insight e preparei um comboio com a família toda rumo à cidade onde meu pai nasceu, no Sul de Minas. Eu, meus irmãos, noras, genros e três netos na barriga, rumo ao nosso passado desconhecido.

Tia Carminha se juntou para ser nossa guia naquele território desconhecido. Na praça principal e em frente à igreja da cidadezinha que viveu a riqueza da época do café, uma casa bonita com terraço e janelas com vitral.

Havia um jardim bonito com flores e banco de jardim nos fundos. Conheci a cozinha e o quarto de empregados, espaços onde minha avó deve ter passado a maior parte do tempo.

Foi provavelmente ali que meu pai foi gerado pelo filho da sinhá e de onde minha avó saiu fugida diante da decisão da matriarca: eu quero a criança, mas não quero a mãe. Tempos duros aqueles.

Minha tia organizou um almoço com tios e primos distantes para um encontro que foi o único. Meu pai convidou a todos.

A mesma árvore Benedicta

De lá, pegamos a estrada que levava ao vilarejo vizinho, onde minha avó passou sua gestação e pariu meu pai. E o deixou sob os cuidados do capataz, inimigo político do meu bisavô, enquanto pegou o trem para São Paulo para começar uma nova vida.

Conta meu pai que durante uns três anos ele ia todos os dias até a mesma árvore para ver se minha avó estava voltando. Até o dia em que ela chegou e o levou para sempre.

Foi emocionante quando chegamos naquela vila parada no tempo, poucas ruas de terra, meia dúzia de casas e uma pequena igreja. Meu pai, já com 70 anos e há 66 longe dali, ficou com os olhos vidrados. E, com uma segurança incrível, dizia ao motorista: “vira aqui, sobe naquela colina, à direita… Aqui!”

Apontou a árvore e disse:

“era aqui que eu esperava a minha mãe”

Confesso que cheguei a achar que era apenas imaginação dele, mas não. Confirmamos depois, que o lugar era exatamente aquele.

Abri uma toalha grande e colorida, coloquei frutas frescas, flores, velas e suas fotos antigas – que havia levado – e fizemos um lindo ritual de família com direito a música, roda, dança e muitos abraços. Foi dos momentos mais significativos e belos da minha vida.

Melhor esquecer… Benedicta

Dali saímos pelas ruas a esmo. Meu pai avistou uma pessoa à distância e disse: “ali, aquele homem deve saber algo”. Desceu do carro e foi na sua direção. Mostrou a foto do dia em que, diante daquela mesma igrejinha, minha avó preparou meu pai para a partida.

Ele respondeu sem pestanejar:

“Esta aqui é a Benedicta. E este é o menino dela”

Meu pai disse então que era aquele menino. O velho ficou profundamente emocionado. Curiosa, perguntei: “o que o Sr. sabe dessa história?”. Ao que ele respondeu com os olhos baixos: “Há coisas que é melhor esquecer…”

Comecei este 2021 decidida a fazer uma faxina geral na casa. Iniciei pela papelada. Entre as pilhas de boletos e contratos vencidos me deparei com a cópia das fotos que há anos pedi para fazer

Aquela foto sobre a porta, que ainda está na cabeceira do meu pai e outras duas imagens históricas do meu pai com a minha avó me tocaram tão profundamente que estão agora mesmo aqui ao meu lado, para me lembrar o quanto somos nossas histórias e lembranças.

Os anos passaram tão rápido… Para mim, já são 58 voltas no Sol marcadas pela “presença” dela e as muitas descobertas, surpresas e impactos que só aumentam com o tempo e com o meu entendimento do que tudo isso significou para todos nós.

Amor pela música Benedicta

Do lado da minha mãe tenho a memória rica dos avós queridos e muito presentes – vô Nani e vó Phina – almoços de domingo, primos ao redor, frango de panela, férias em Leme, o quadro da Santa Bárbara aceso na sala e minha avozinha rezando o terço em latim.

Depois da perda do meu avô, as temporadas dela em casa, dormindo no nosso quarto e prendendo seus cabelos longos e brancos, como a Lua, em tranças e coques. Nunca ouvi ela proferir uma só palavra rude. Muitas memórias doces. Quanto amor…!

Da minha origem paterna fica a saudade do que não foi. Reconheço nas fotos do meu avô os traços do meu pai e os olhos cor de mel da minha irmã. Sinto que herdei seu amor pela música. Meu pai honrou seu gosto pela boemia.

Rever essas fotos nesses tempos de tanta reflexão me tocaram fundo.

Às vezes, me pego pensando: e se meu avô tivesse cuidado do meu pai, se minha avó não tivesse ficado tão sozinha, e se ela não tivesse morrido tão jovem, ou se meu pai tivesse ao menos dado um abraço em seu pai, e se…?

Somos feitos de histórias Benedicta

Mas a vida como é já é uma benção. Tudo o que sou é fruto, resultado e sina dessa história extraordinária. Já entendi que todo fato pode ter muitas versões e interpretações. Eu fico com esta que me cabe.

A honra de ter uma avó guerreira, que enfrentou seu tempo com dignidade e deixou uma semente forte e generosa. Olho para a foto dela e minha admiração só aumenta.

Me solidarizo com todo os desafios que ela, e tantas mulheres sozinhas, precisam enfrentar para cuidar de seus filhos.

Olho para o meu pai e sou tomada por uma enorme admiração por ele ser a pessoa mais autêntica, honesta, inclusiva e livre que conheço, mesmo tendo conhecido a dor muito cedo, a vida solitária e tantos riscos pelo caminho. Nos olhos dela vejo os meus, me reconheço e gosto do que encontro.

Mais do que um grupo de pessoas, temos uma família profundamente amorosa e feliz. Entre nós não há, e nunca houve, qualquer tipo de sentimento negativo, desconfiança, mágoa ou rancor. Durante muito tempo essa história me pareceu muito triste, hoje entendo como uma experiência de coragem, superação e de amor incondicional.

Entendo cada vez mais que somos narrativas incompletas. Somos feitos de histórias. Não tive filhos, mas a vida me deu netos do coração. São amores bons que chegaram de surpresa na minha vida, um presente.

Espero deixar na vida deles as sementes de amor, caráter e esperança que recebi. Vivo com gratidão a profunda experiência da avosidade.

Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. 

Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. 

E mais… 

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Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. 

Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. 

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Vânia Bueno

Comunicadora que escolheu a convivência produtiva como trabalho e como causa, é palestrante, facilitadora de grupos, professora e mentora para líderes e organizações

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