Gerações

Caruru no dia de Cosme e Damião

Final de setembro é a época da comida feita para divindades, que nós, míseros mortais, espertamente aprendemos a apreciar e difundir

● A cozinha das vovós de hoje

 

► Bem que os grandes chefs gostariam de ter inventado… Nada se iguala ao caruru de preceito, o “caruru dos santos”, uma herança da religião dos antigos escravos africanos que penetrou como nenhuma outra nos lares católicos brasileiros. É um conjunto variado de muitas iguarias, mas leva o nome do prato principal, o caruru. É sempre preparado em setembro, em homenagem os santos gêmeos católicos Cosme e Damião. São a mais perfeita síntese da culinária afro-baiana – comida feita para divindades, que nós, míseros mortais, espertamente aprendemos a apreciar.

Como nas outras manifestações de sincretismo religioso, onde o cristianismo e o candomblé se fundem, os ibeji (santos gêmeos dos nagôs) são cultuados na figura dos santos gêmeos católicos. Mas é certamente por causa da divina culinária que esse costume, mais que qualquer outro, excede os limites religiosos.

Enquanto no Centro-Sul do Brasil os santos meninos da devoção do povo brasileiro são homenageados na forma da distribuição de doces e confeitos para as crianças, na Bahia são os adultos que se banqueteiam, e não só no dia 27 de setembro (o dia do calendário religioso dedicado aos dois santos), mas por todo o mês de setembro, com repeteco em outubro.

O costume é assim: sete meninos são convidados de honra para abrir os trabalhos – a lenda diz que havia sete irmãos: Cosme, Damião, Doú, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi. Em seguida, os adultos e demais crianças são servidos pelos anfitriões, que fazem prato por prato, começando pela iguaria de quiabo picado que dá o nome à celebração e acrescentando uma variedade infinita de acompanhamentos: vatapá, efó, xinxim de galinha, frigideira de camarão, siri mole, pipoca, amendoim, farofa de azeite de dendê, cana picadinha, banana frita, arroz branco, abará, abóbora, acarajé, milho branco, coco em pequenos pedaços, galinha ao molho pardo e ovo cozido.

Geralmente, a iniciativa parte de famílias em que nasceram filhos gêmeos, tudo no bom estilo afro-brasileiro, em casas de pobres e de ricos. Mas o melhor do costume é que, em cada celebração, os anfitriões deixam, na panela de caruru, três pequenos quiabos inteiros, que são servidos ao acaso aos convidados. Quem é premiado com um desses quiabos herda a obrigação de oferecer outra festa igual no ano seguinte, e de convidar todos os presentes. Por suprema dádiva da providência, nem mesmo os mais ferrenhos agnósticos ousam quebrar esse encanto – afinal, com santo não se brinca –, multiplicando cada comemoração por três, numa virtuosa corrente.

Quanto à origem europeia, os católicos acreditam que em casa onde existam imagens de São Cosme e São Damião não entra epidemia, feitiço, bruxaria, mau olhado e espinhela caída.

A vida dos santos gêmeos está mergulhada em lendas. Dizem que eram árabes e viveram na Silícia, na antiga Ásia Menor, hoje costa mediterrânea da Turquia, por volta do ano 283. Praticavam a medicina e curavam pessoas e animais, sem nunca cobrar nada. Como viveram no auge das perseguições aos cristãos, eles foram torturados e degolados por ordem do imperador romano Diocleciano.

O culto aos dois irmãos é muito antigo. Há escritos sobre eles desde o século V. Em certas igrejas, havia um óleo santo de São Cosme e São Damião, que tinha o poder de curar doenças e dar filhos às mulheres estéreis. E, durante séculos, foram comuns na Europa as Irmandades de Cosme e Damião, que congregavam os médicos e os cirurgiões.

No Brasil, a devoção trazida pelos portugueses misturou-se com o culto aos orixás-meninos da tradição africana, em que são associados aos rituais de fertilidade.

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No candomblé, os ibeji também representam o aspecto criança de cada um dos demais orixá. Muitas vezes aparecem com um irmão menorzinho, o Idowu, que cuida das criancinhas pequenas. Na Bahia, é comum encontrar em uma capela católica as imagens dos santos gêmeos, tendo, ao lado, pequenos potinhos dourados com água e “manjares africanos”.

Voltando para a culinária, a grande celebração começa desde a véspera, porque muitas pessoas são envolvidas na preparação de cardápio tão extenso. Cozinheiras e cozinheiros experientes, sempre acompanhados por uma horda de aprendizes, empenham-se para oferecer aos comensais o mais saboroso caruru. Após a escolha de tenros quiabos, bem lavados e enxutos, eles são cortados em cubinhos (exceto os três pequenos quiabos inteiros do preceito). Também são selecionados os camarões secos, o puro azeite da flor de dendê, as pimentas e tantos outros temperos (ver a receita).

Um mês depois, no dia 25 de outubro, as cerimônias se repetem, embora com menor intensidade. Nesse dia, comemora-se São Crispim e São Crispiniano, também gêmeos e confundidos na crendice popular com Cosme e Damião. Por via das dúvidas, é melhor reverenciar esses dois também…

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Receita de caruru para 30 pessoas

200 quiabos
1 kg camarão seco (tipo graúdo)
4 cebolas brancas grandes
1 maço de cebolinhas verdes
1 maço de coentro
6 tomates maduros
2 pimentões graúdos
8 dentes de alho
1 litro de azeite de dendê
1 litro de leite de coco
1 colher de café de gengibre ralado

Modo de preparar:
Lave bem os quiabos, separe dez quiabos pequenos e corte o restante em cruz, de forma que fiquem em cubinhos bem pequenos, como se tivessem passado por um processador.
Bata todos os temperos no liquidificador com meia xícara de vinagre. Triture também o camarão seco.
Misture o tempero triturado com o camarão e o quiabo em uma panela grande e coloque o azeite de dendê. Leve ao fogo.
Deixe cozinhar por aproximadamente 50 minutos, mexendo sempre.
Coloque o leite de coco e continue mexendo. Após 30 minutos, aproximadamente, estará tudo pronto.
Três quiabos conservados inteiros são para os convidados adultos e ou outros sete vão nos pratos dos ibeji.

(Receita de Zeno Millet, neto Mãe Menininha, iyalorixá do Terreiro do Gantois.

Crédito da imagem: fotos de Marilton Trabuco

 

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Elisabete Junqueira

Publicitária e jornalista, fundadora e editora do portal avosidade, avó de Mateus, Sofia, Rafael, Natalia, Andrew, Thomas e Cecilia Marie

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