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Vania Abreu: Lembranças das avós e do avô

Vania e a vovó portuguesa Josefina, que fazia trabalho voluntário no Hospital Português da Bahia, onde os netos nasceram

► A vida em minha infância era muito mais simples. Sou baiana, filha de um português nascido em Braga e de uma filha de italianos. Desde pequena guardo comigo um sentimento de pertencimento à minha família e ao meu lugar. Não havia saudosismos da Itália ou de Portugal. Desta sensação de acolhimento havia também a casa. A casa onde crescemos (eu e meus quatro irmãos) foi projetada por meu bisavô italiano materno Emanuelle Da Rin. Tinha quintal com muitas árvores de frutas, pergolado com parreira e uma sacada para a rua. Era linda e feliz, pois vivia cheia de primos, primas e amigos de rua, tempos em que as casas também eram lugares mais encantados que decorados. Lembranças

A casa de meus avós italianos, que também fora arquitetada pelo mesmo bisavô italiano, parecia ter saído de um conto de fadas, em minha imaginação. Era um pequeno prédio no Largo Dois de Julho, centro de Salvador. Subíamos três lances de escada para chegarmos ao andar deles. O quarto de meus avós tinha janelas pequenas e baixas, me sentia numa casinha de bonecas. No segundo quarto havia escada bem estreita por onde tínhamos acesso ao terraço redondo que para mim era uma torre de um castelo. Entre a imaginação e a realidade estava a casa acolhedora de meus avós. Recordo especialmente das manhãs e como pequenos gestos de convivência no dia-a-dia trazem a intimidade como parte importante do amor. Não fomos “criados” por meus avós, mas íamos muito à casa deles, fosse porque os meus pais precisassem se ausentar por questões de trabalho, fosse porque um de nós estava doente.

Imaginação e magia

Dessas manhãs guardo a alegria de meu avô que acordava antes de minha avó para lhe preparar o café da manhã. Íamos acompanhando suas tarefas e lhe auxiliando no que era possível. Ele trocava a água dos bebedouros dos passarinhos e um era especial: o famoso (e para nós quase mítico) “pássaro preto”. Este momento parecia uma mágica, pois quando ele abria as gaiolas os passarinhos não fugiam. Saíam para tomar banho nos potinhos com água fresca colocados bem perto das gaiolas e voltavam. Ou será que é a minha imaginação que crê na magia de meu avô, e os passarinhos nunca saíram da gaiola para tomar banho? De qualquer modo, já havia o encanto. Depois disso, ele fazia a barba e ia despertar minha avó Olga com um sorriso e dizia: “Buongiorno, principessa”. Tudo pronto: tomávamos café da manhã, todos juntos.

O almoço era tarefa de todos: avô, avó e netos. Na cozinha dessa casa fizemos muitas massas juntos, e até hoje posso vê-las estiradas na mesa cheia de farinha de trigo, assim como o moedor de carne preso a ela, uma pequena mesa de madeira. No almoço sempre havia um macarrão na mesa e um vinho tinto. Todas as comidas também pareciam saborosas demais para não terem um ingrediente “secreto”. Um simples ovo frito era digno de um chef. Além das mãos de fada para a cozinha, também havia o talento para bordados e costuras. Minha avó, minha mãe Liliana e minha tia Silvia elaboravam e costuravam muitas de nossas roupas e nossas incríveis fantasias de carnaval. Sim, íamos todos vestidos super bem produzidos para os nossos bailes no Clube Fantoches da Euterpe ou para o carnaval de rua na Avenida Sete, desde os meus 4 anos de idade.

Portuguesa e italiana

Minha vó italiana tinha o mais doce sorriso que eu já vi. Era uma mulher firme, apesar de sua figura aparentemente frágil. Tinha gestos e modos muito elegantes, e o tom de voz era sempre suave. Só dizia uma palavra em tom mais forte para nos aquietar: “– Basta”. Essa mulher doce amava ler livros. Era culta e apesar de ter nascido num tempo quando as mulheres não podiam ter muitas escolhas, não acolheu a submissão nem a exclusão do conhecimento. Lembro que, perto dos seus 90 anos, conversamos sobre o livro de José Saramago “ O Evangelho segundo Jesus Cristo” que ela tinha acabado de ler.

Minha avó portuguesa se chamava Josefina e era também uma mulher elegante. Estava sempre com os lábios pintados de vermelho e as unhas das mãos muito bem feitas. Sem dúvida ela era mais vaidosa que minha vó Olga. Acordava cedo, fazia sua ginástica sozinha na sala e estava pronta para seus trabalhos voluntários no Hospital Português da Bahia, onde todos nós nascemos. Minha vó Fina, ou vovó Fininha, como chamávamos, ficou viúva muito cedo e morava com a sua filha Marília e o marido dela, Rogério, e talvez por isso a casa era menos invadida por nós. Quando precisávamos dela, ela ia à nossa casa para ficar conosco. Eu particularmente adorava, porque ela arrumava todos os armários e dava um jeito na nossa casa sempre cheia de gente e quase sempre cheia de coisas fora do lugar.

Sem presentes e mimos lembranças, lembranças

A família portuguesa era mais formal, só íamos em dias combinados, mas a gente sabia que eles nos esperavam felizes pela quantidade e beleza dos doces postos à mesa. Fios e pingos d’ovos embebidos em caldas cristalinas de açúcar, doces lindos e deliciosos e o indescritível bacalhau que era sempre o nosso prato principal. Ela gostava de preparar tudo minuciosamente para nos receber.

Herdamos desta convivência muitos e muitos aprendizados, sensibilidades e uma felicidade de viver o presente, o momento, o lugar, o tempo do agora.

Meus avós não foram fazedores de todas as nossas vontades, muito pelo contrário, sabiam da importância de dar continuidade à educação e de nos dar exemplos amorosos e justos.

Eles nos ensinaram através desta convivência que o amor é bordado ali nos fios das horas, no ensinar e no fazer das coisas, no acolhimento e na disponibilidade. Não lembro de presentes, nem de mimos excessivos, nem de ter brinquedos à nossa espera. Lembro que a brincadeira estava ali no dia-a-dia e na invenção delas. Estava no fazer do café da manhã, no limpar das gaiolas, no esticar das massas, no arrumar dos armários, nos gestos de paciência para ensinar, nos sorrisos, e principalmente nas palavras gentis. Um amor doce que só os avós podem nos dar nessa medida.

Tivemos exemplos de mulheres elegantes com pensamentos altivos e fortes, que não perderem a doçura diante dos desafios, e da figura masculina alegre, solidária e sem a arrogância característica dos provedores.

100 anos, 101 anos…

Devo a meu avô o gosto pelas manhãs, a alegria e disposição para as festas. E por dar sentido às coisas mais simples de cada dia como encantadoras. Devo à minha vó Fininha o gosto pela casa cheirosa e arrumada. Devo à minha vó Olga a importância do acolhimento, dos cuidados pequenos e da busca da delicadeza. Todos sempre estiveram dispostos a encontrar a felicidade no mais comum dos dias. Sem as angústias pelo ter ou pelo que não havia, ou mesmo pelo envelhecimento.

Hoje, devo muito do que sou a eles. Que foram muito mais do que esse texto possa ter a pretensão de definir. Compreendi que para sermos nós mesmos, é preciso conviver com muitas formas de amor. Porque somos misturados, e por isso, únicos. Aprendi assim a entender com serenidade as muitas fases da vida, em suas partes. A de ser filha que me fez desejar e amar ser a mãe das minhas filhas. A de ser neta, que criou em mim o desejo de poder ser também uma avó especial para meus netos. E a de ser uma mulher abençoada por experimentar com plenitude uma das riquezas humanas: ser gente.

Vivo com ternura as fases da minha vida sabendo que em cada uma delas haverá novas e incríveis felicidades. Família é muito mais que laços sanguíneos. Ela se faz na fraternidade, do poder que há na certeza de nascer e se sentir fazendo parte de algo. No sentido que isso nos dá para viver, para enfrentar dores, crescer, envelhecer e enfrentar tantos outros mistérios sem explicações. É uma bênção poder ter sentido tanto, de diferentes formas, ser amada.

Minhas avós e meu avô se foram já bisavós. Edgard faleceu aos 101 anos, Josefina aos 100 e Olga aos 96 anos. Deixaram uma presente saudade.

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14 Comentários

  1. Parabéns a Vânia pelo texto e principalmente por fazer referência a uma situação que para mim é básica na relação com meus netos;” Não lembro de presentes, nem de mimos excessivos, nem de ter brinquedos à nossa espera…” Perfeito!!!

  2. Vania querida. Lindo, lindo seu texto, fiquei tão emocionada !. Com suas palavras revisitei aquele tempo inesquecível que nos deixou marcas tão especiais de afeto, ternura e lições tão profundas sobre a vivência de amor em família. Parabéns, seu texto também nos convida a uma reflexão sobre a família e seus desafios diante do contexto atual, de uma ordem social mercadológica.

  3. Dinda amada, fiquei muito emocionada e me teletransportei para a casa do Largo 2 de Julho. Minha avó, vó fininha e meu avô devem estar muito felizes também. Obrigada pela homenagem:-) Saudades

    1. Cê Viu Maroca! E nós brincamos tanto nesse quarto com uma torre…rs! Que bom que as nossas lembranças são as melhores. Beijos com mais saudades ainda!

  4. vania querida
    Lindo texto! Parabéns … Me trouxe boas lembranças e belas recordações….
    Fico feliz pelas suas observações e principalmente pela singeleza das suas análises sobre o amor e a família.
    Obrigada e saudades .

  5. Recordar os avós é sempre doce para o coração.
    Aqueles que marcam o fazem muito mais pelas suas atitudes do que pelos presentes que oferecem

  6. Vania querida, que grata felicidade encontrar você aqui no Avosidade!
    E claro, com a sua sensibilidade ímpar! Que texto delicioso de ler !
    Saudade de você nos palcos paulistanos, nos Sescs e nas Fnacs:
    “Diga que nos ama, seja nossa guia. A sua travessia nunca chega ao fim …”
    Sei de um monte de fãs que te procuram loucamente… volte logo!

    1. Oi Andreia

      Muito muito obrigada
      Estou de fato reclusa ainda que não esteja me escondendo, rs!
      Agradeço pelas palavras, pela saudade, pelo carinho.
      Vamos ver se a travessia me leva de volta!
      Muitos beijos com meu carinho

      1. Vania,
        Leve o tempo que precisar, mas saiba, ou melhor, tenha a certeza de que terá uma legião (talvez não tão grande, mas de ótima qualidade) te esperando! Você e a sua música são muito importante para nós!

    2. Oi Andreia

      Muito muito obrigada
      Estou de fato reclusa ainda que não esteja me escondendo, rs!
      Agradeço pelas palavras, pela saudade, pelo carinho.
      Vamos ver se a travessia me leva de volta!
      Muitos beijos com meu carinho

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