Gerações

Memória e presença de meu avô

Como é boa a sensação de tornar palpável algo tão abstrato

A química Estelle se emociona ao lembrar das lições de vida que recebeu de seu avô Arnoldo Diorato

Meu avô era uma pessoa singular, única, ímpar. Um homem de uma força enorme. Veio de uma família humilde, da roça, e chegou a quebrar pedra na cidade para conseguir trazer o pão pra casa; conseguiu sair da condição em que vivia através do estudo… E era isso, então, que sempre passava pra mim: “Você só crescerá através do estudo”. Memória.

Foi com ele que sempre tive a sensação de nunca ser traída, nós tínhamos o que pode se chamar de cumplicidade. Ah! Como é boa a sensação de tornar concreto e palpável algo tão abstrato.

Aprendi com meu avô e com minhas tias muitas coisas que fico a me perguntar: Será que conseguirei transmitir a meus filhos? No auge desta vida corrida de Brasília, por vezes me pego sentada na cama, perto do meu criado mudo, pensando nele… e me vêm tantas lembranças que o sorriso aparece do nada!

Me lembro da cadeirinha e do quadro que ele mandou fazer pra mim, da vitamina C que eu chamava de peixinho e ficava pulando até terminar de reagir (e até hoje tomar vitamina C efervescente tem um sabor especial – meu peixinho!).

Lembro da gemada de ovo e do ovo da gema crua que ele nunca conseguiu me convencer a comer. Sim, desde pequena tenho a personalidade forte e acabávamos ficando de mal por 1 dia. Eu sempre ia pedir desculpas, mas tornava a não comer!

Sem volta  memória

De como eu aprendi a cantar o Trem das Onze e imitar o pandeiro com a mão… “Já não posso ficar nem mais 1 minuto com vocêeee, sinto muito amor, mas não pode seeer, mooooro em Jaçaanã, se eu perder este trem que sai agoraaa às onze hoooras, só amanhã de manhãããã…”

Lembro de quando estava com más amizades na escola e saía depois das aulas para tocar campainha e sair correndo, e que meu avô foi atrás de mim porque eu estava chegando atrasada para o almoço. Lembro que ele não me falou nada e fiquei com o sentimento de não mais querer decepcioná-lo. Mesmo já depois de crescida, me pegava em algumas situações e pensava em como não decepcioná-lo. Memória.

Quando eu comecei a estudar para o vestibular e dormia sobre os livros, ele ia me levar para a cama, eu assustada perguntava se já tinha amanhecido e ele respondia: – “Não! Ainda é noite.”

Passei no vestibular, fui estudar em Salvador. E todo domingo ligava do orelhão chorando, querendo voltar. Um dia ele me perguntou se eu queria estudar ou queria voltar para Ilhéus. Porque a única oportunidade que tinha lá pra mim era ir trabalhar em loja de calçados. É um trabalho íntegro e honesto, mas não era bem o que eu queria. Desde esse dia não chorei mais e também não quis mais voltar para Ilhéus.

Fragilidade do poeta memória memória

Nas férias, ia pra Ilhéus, antes ligava e ele perguntava o que eu queria comer e eu respondia: “sobe-desce” (uma mistura de legumes e carne que ao cozinhar sobem e descem – mas que só ele sabia fazer). De manhã cedo apontava em casa e gritava Voooooô! E ele respondia Ooooô e descia para abrir o portão! Tempo bom aquele.

São tantas as lembranças que só agora entendo a imensa fragilidade do poeta que pensa e, na ânsia de escrever, as palavras, danadas, fogem do papel.

Ele, a estrela que está lá no céu e brilha forte quando ergo minha cabeça para procurar, me dizia que só queria morrer depois que entrasse em uma sala e mandassem chamar “doutora” Estelle. O senhor pode não estar de corpo presente, mas a sua “doutora” está terminando o mestrado. E assim como cantara Gonzaguinha, ela só queria que o senhor soubesse que esta menina hoje é uma mulher. E que esta mulher é uma menina que colheu seu fruto, flor do seu carinho.

Meu avô, eu queria que o senhor soubesse que nunca mais vou desistir de nada. E que a atitude de recomeçar é todo dia, toda hora. É de se respeitar na sua força e fé e se olhar bem fundo até o dedão do pé.

Um muito obrigada por ter cuidado e cuidar de mim.

Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois.
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Estelle Silva Diorato Teixeira de Mendonça

Doutora em Química pela Universidade de Brasília, química da Fundação Universidade de Brasília em exercício na Universidade Federal da Bahia, amante da língua francófona, estudante de piano, yogini, militante da causa antirracista e antimachista; mãe de dois filhos, sendo um deles com TEA

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5 Comentários

  1. Boa noite, sou seu parente distante, moro em São Paulo. Já nos falamos por carta há muitos anos (ali por volta de 2004… 2005).
    Que legal o seu relato. Achei aqui as cartas que você enviou e fui pesquisar, fiquei muito feliz em saber do seu Mestrado em Química. Eu sou Advogado Público aqui em SP, estou tranquilo, com as dificuldades normais de vida.
    Bjs, Estelle!

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