Gerações

Nossas noites

Quando o filme está ali pela metade, mais ou menos, entra o neto na história, mas só mesmo assistindo ao filme pra sentir o que acontece

 Um drama suave e equilibrado que resulta em um filme envolvente

Ao trabalharem juntos pela quarta vez, em 2017, 51 anos depois da primeira, Robert RedfordJane Fonda, gloriosamente belos na velhice, fizeram o que deveríamos esperar deles: uma beleza de filme. Quando eram gloriosamente belos na juventude, os dois foram dirigidos por profissionais experientes  – Arthur Penn em Caçada Humana/The Chase (1966), Gene Saks em Descalços no Parque (1967) e Sydney Pollack em O Cavaleiro Elétrico (1979). Noites

Agora, quando se reuniram novamente, Redford e Jane escolheram ser dirigidos por um jovem. Ritesh Batra nasceu em Bombaim, Índia, em 1979, quando minha filha, aos 4 anos, começava a ver seus primeiros filmes comigo. Na época, Fernanda tinha deliciosos caracóis alourados, Redford, aos 43 anos, e Jane, aos 42, estavam justamente filmando O Cavaleiro Elétrico. Ele tinha uma indicação ao Oscar de melhor ator por Golpe de Mestre/The Sting (1974), e ela, três indicações ao Oscar de melhor atriz, com uma vitória, por Klute (1971).

Maturidade nas telas e na criação …noites

Interessante: os dois monstros sagrados foram dirigidos por um jovem, mas os personagens que eles interpretam foram criados por um homem experiente, velho. Our Souls at Night foi o último livro de Kent Haruf, e foi escrito quando o autor já estava no final da dura convivência com o câncer. O livro foi publicado em 2015, meses após a morte do autor, aos 71 anos de idade.

O espectador do filme não tem a obrigação de saber isso, Mary e eu não sabíamos de nada quando vimos. Mas, agora, depois de ler um pouco e saber disso, não dá para evitar o espanto, a fascinação. A poucos meses do fim, Kent Haruf foi capaz de escrever uma história sobre dois velhos que não é desesperada, desesperançada, pessimista, negra.

Suave e profundo …noites

Muito pelo contrário.Our Souls at Night é um drama suave, plácido, que vê as adversidades, os problemas, as agruras, mesmo as grandes tragédias que acontecem na vida de uma forma tranquila, sensata. Que não transforma revés em catástrofe absoluta, terrível.

Não, não é, de forma alguma, uma história cor-de-rosa, idílica, poliânica. É um jeito de ver a vida de forma de fato suave, plácida – nem com otimismo desenfreado, nem com pessimismo absoluto.

Noites

Talvez porque as pessoas mais velhas, mais vividas, mais experientes, como o escritor Kent Haruf, como esses maravilhosos atores, saibam que a verdade, na imensa maior parte das vezes, está não nos extremos, mas no meio.

Mas inverti as coisas, passei o carro na frente dos bois: apresentei conclusões antes de falar de como começa.

Vizinhos há 40 anos… noites

Começa mostrando logo a que veio. Vemos que o personagem de Robert Redford vive sozinho. Louis Waters é homem de hábitos rotineiros: toma o café da manhã numa cafeteria da cidade pequena em que vive, junto com um grupo grande de outros velhinhos. Boa parte do tempo passa em casa. É um sujeito ordeiro, cuidadoso, cuja casa está sempre limpa, arrumada. Lê o jornal, faz palavras cruzadas, deixa a TV ligada no noticiário, embora não fique prestando muita atenção a ela.

Não se passaram sequer 5 minutos de filme, e toca a campainha na casa de Louis. É Addie Moore – o papel de uma Jane Fonda cuidadosamente preparada para aparentar todos os 80 anos que a atriz tinha em 2017, o ano de lançamento do filme. Ela usa o cabelo bem comprido, bastante grisalho – bem diferentemente de sua aparência nos filmes feitos na mesma época, quando está bem maquiada para esconder rugas, e o cabelo é curto e colorido. E usa roupas simples, comuns, como as de uma senhora de 80 anos.

… mas quase não se conhecem …noites

Cada gesto, cada palavra, cada silêncio, cada pequeno detalhe diz muito, nesta sequência. Uma das primeiras do filme, em que Addie Moore toca a campainha da casa de Louis Waters. Ele demonstra que está surpreso com a presença dela ali.

– “Mrs. Moore!” – diz ele.

– “Addie.” – diz ela.

Ela diz que gostaria de conversar um pouquinho. Ele permanece estatelado diante da porta, imóvel. Ela se sente então obrigada a fazer um gesto, algo que quer dizer “não vai me convidar para entrar?” E só então cai a ficha na cabeça dele.

Sentam-se na sala dele, cada um em um sofá. Do aparelho de TV sai a voz de locutores apresentando a previsão de tempo. Ele não percebe isso, não se coça – está tão absolutamente surpreso com a visita que não percebe nada. Bem, é um velhinho um tanto lento, talvez.

Ela olha para a TV, de tal forma que fica impossível ele deixar de notar a grosseria que está cometendo. Desliga o aparelho. Aí então… Não chegamos ainda sequer a 10 minutos de filme, mas o que acontece em seguida é tão absolutamente surpreendente que a rigor, a rigor, relatar o fato é um spoiler.

Fica o aviso: o eventual leitor que não tiver visto o filme deveria parar de ler aqui.

Grande imensa surpresa logo no início

Addie diz para Louis que gostaria que ele fosse dormir na casa dela, na cama dela. Jane Fonda foi muita coisa na vida. Bem no começo, foi a garotinha filha de um dos maiores atores-astros-mitos do cinema mundial, Henry. Um sujeito que não dava grande atenção aos filhos – e de repente, muito jovenzinha de tudo, começou a trabalhar na mesma indústria em que o pai era um dos nomes mais importantes. Morria de insegurança – desenvolveu uma bulimia que escondeu de tudo e todos, para só revelar já depois de velha, ao escrever uma autobiografia que é escândalo de beleza.

Absolutamente sem querer, virou sex symbol, em grande parte devido ao talento esperto de seu então marido, Roger Vadim, o homem que viveu com Brigitte Bardot e Catherine Deneuve. Depois virou a heroína da contracultura, da contestação ao Sistema, a Hanói Jane, que visitava e apoiava o Vietnã do Norte em guerra contra seu próprio país. Depois virou instrutora de fitness, embora naquele tempo creio que não se usasse ainda essa expressão. Teve até fase de mulher dondoca de biliardário, casada com o megaempresário Ted Turner, o sujeito que cometeu o crime de sair colorizando clássicos filmados em preto-e-branco.

Bonita e gostosa, isso foi sempre, desde que apareceu ao lado de Anthony Perkins em Até os Fortes Vacilam/Tall Story (1960). E então, quando o filme não chegou sequer aos 7 minutos, a personagem de Jane Fonda diz para Louis-Robert Redford que gostaria que ele dormisse na cama dela.

Dois viúvos, uma solidão …noites

Mas logo acrescenta: não tem nada a ver com sexo, que isso deixou de ser importante para ela faz muito tempo. É que ela se sente solitária, e ele deve se sentir também; e de noite a coisa fica pior. Ela acha que se eles ficassem juntos, na mesma cama, poderiam os dois dormir melhor. Diante da proposta absolutamente surpreendente, ele diz que vai pensar.

É muito interessante a forma com que o diretor Ritesh Batra e os roteiristas Scott Neustadter e Michael H. Weber decidiram iniciar o filme. Quando Addie bate a campainha na casa de Louis, senta-se na sala dele e faz a proposta de que durmam juntos, não sabemos absolutamente nada sobre a relação entre os dois. Vamos aprendendo pouco a pouco, enquanto vai rolando a história.

Vamos percebendo que se conhecem, mas não são amigos, não são próximos, de forma alguma – tanto que ele a trata, de cara, como sra. Moore. Quando Addie está para sair da casa de Lois, após a rápida visita, ele diz, bastante desajeitadamente, que vai ligar para ela. E acrescenta que certamente Diane tinha anotado o número dela.

Início de uma grande amizade …noites

As sinopses avisam: os dois são vizinhos, nunca foram muito próximos, são viúvos. O espectador vai percebendo isso aos poucos. Ela se refere a Carl, o marido, e os dois se referem a Diane, a mulher dele.

O estranho – embora compreensível – é o fato de que Louis e Addie são vizinhos há uns 40 anos, e se conheciam praticamente só de vista, de um ouvir falar do outro. Muito provavelmente Addie tinha tido conversas com Diane – mas pelo jeito não chegaram a ser amigas.

À medida que o tempo vai passando, e aqueles dois seres solitários, viúvos, filhos criados, vão se encontrando, o espectador vai percebendo que alguma coisa um sabia da vida do outro. De longe, sem intimidade, mas sabia – cidade pequena é assim.

Ela sabia que, durante um tempo, ele tinha tido uma amante, e passado um tempo longe de casa. Ele seguramente sabia que na vida dela tinha havido uma grande tragédia, uma horrível perda.

Fofoca na cidade pequena …noites

Não demora nada, e toda a cidade está comentando o caso dos dois. Vão se aproximando, aos poucos, os dois viúvos. Vão se conhecendo, se descobrindo.

Nos primeiros dias, Louis toma extremos cuidados para não ser visto pelos vizinhos. Dá voltas, evita ir direto de uma casa à outra. Bate na porta dos fundos. Addie acha aquilo estranho, e Louis explica que quer evitar falação dos vizinhos. Ela replica que não dá a menor atenção ao que os outros dizem.

E então, lá pelo terceiro dia, ele bate na porta da frente. Na casa ao lado, o casal de vizinhos está sentado na varanda.

Não demora nada, e, quando Louis chega à mesma cafeteria de sempre, todos os amigos estão com sorrisinhos e frases gozativas sobre o fato de ele estar saindo com a viúva Addie. O que mais se diverte é Dorlan, um velhinho feio que nem a fome, que usa sempre um bonezinho. É o papel de Bruce Dern.

Fofocalhada, coisas de cidade pequena. Quando o filme está ali pela metade, mais ou menos, Louis e Addie fazem um passeio com Jamie (Iain Armitage), o único neto dela, que o pai deixa com ela durante as férias escolares. Nos créditos finais, em letra pequena, lemos que o filme é dedicado a Kent Haruf.

Belíssima trilha sonora …noites

É necessário fazer um registro sobre a trilha sonora do filme. Foi composta por Elliot Goldenthal, o mesmo que fez a também bela trilha sonora de Frida (2002). Ele criou temas que são exatamente como o filme – suaves, plácidos. Nada de grande orquestra, nada de muitas cordas, violinos. Só violão e piano, alternadamente – simples e básico como a vida em cidade pequena.

As músicas incidentais foram escolhidas a dedo, cuidadosamente – e também são preciosas. Há uma Emmylou Harris (“Home sweet home”), uma Gillian Welch (“Orphan girl”), uma Etta James (“A Sunday kind of loving”). As canções em geral aparecem bem baixinhas, ao fundo, com exceção de “What a difference a day makes”, que está sendo cantada por um duo na boate do hotel de Denver em que Louis e Addie se hospedam. A sequência em que os dois dançam ao som de “What a difference a day makes” é belíssima.

De Etta James a Johnny Cash

Mas a música que mais nos chamou a atenção foi uma canção country forte, poderosa, que eu não conhecia, e que toca – bem alto, sem qualquer ruído ou diálogo atrapalhando – na sequência estradeira, em que o casal e o garoto Jamie viajam entre as montanhas do Colorado. Começa sendo cantada por Willie Nelson, mais adiante vem Johnny Cash. “Diacho, que música é essa?”, fiquei pensando. A gente acha que conhece as coisas, mas sempre há muito mais a descobrir.

A canção forte, poderosa – que depois reaparece nos créditos finais – se chama Highwayman, é do grande Jimmy Webb, e foi gravada por The Highwaymen, um supergrupo formado por Willie Nelson, Johnny Cash, Kris Kristofferson e Waylon Jennings. Os quatro grandes cantores e compositores formaram esse grupo, gravaram e se apresentaram juntos durante dez anos, de 1985 a 1995.

E eu nunca soube disso, até agora. Wimwenders e aprendenders. É de fato uma bela trilha sonora para um belo filme.

Dica de cinema… pois

Nossas Noites/Our Souls at Night
De Ritesh Batra, EUA, 2017
Com Robert Redford (Louis Waters), Jane Fonda (Addie Moore)
e Iain Armitage (Jamie, o neto dela), Matthias Schoenaerts (Gene, o filho dela), Judy Greer (Holly, a filha dele), Bruce Dern (Dorlan, amigo dele), Phyllis Somerville (Ruth, amiga dela)
Roteiro Scott Neustadter e Michael H. Weber
Baseado no romance de Kent Haruf
Fotografia Stephen Goldblatt
Música Elliot Goldenthal
Montagem John F. Lyons
Casting Avy Kaufman
Produção Netflix
Cor, 103 min (1h43)

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Sérgio Vaz

Jornalista (Jornal da Tarde, revista Afinal, Agência Estado, revista Marie Claire, Portal Estadão, jornal O Estado de S. Paulo), edita os sites 50 Anos de Textos e 50 Anos de Filmes, e é avô de Marina

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