Gerações

O filho do filho do meu filho

A vovó Cleo, o neto Lu e o autor, vovô Edmilson, e seu truque para matar o tempo e não chamar o neto de neto; e o bisneto, então...

► Eu já fui de ficar à toa, matar o tempo. Mas o tempo é duro de morrer. Nada o detém. Nem o espaço, nem a velocidade, nenhuma fórmula. Então, tentei driblar o maldito. Não houve jeito. Passei a não chamar de “neto” o filho de meu filho.

A ideia era a de ver se ninguém percebia que o tempo passava… também para mim. Mas o tempo corria cada dia mais célere e eu andava mais lento. Sem querer, eu já era “avô”.

Cadê que adiantou não pronunciar as palavras “neto” e “avô”?

Meio intrigado no começo, depois divertido com a minha excentricidade, o filho do meu filho se acostumou a me tratar pelo meu apelido familiar, Ed. Nunca “avô” ou “vô”. Íamos nos ajeitando, os dois.

Quero que se danem os que me vêm com os argumentos de almanaque, de que ser avô é a suprema felicidade, é ser pai duplamente etc. etc. Nunca recusei a condição, só não quero é a ostentação…

Minha artimanha com o menino, porém, me garantiu uns contratempos. Minha nora, mãe do filho do meu filho, passou a jogar no time adversário. Tinha direito. Afinal, o pai dela era, assumidamente, o único dono do titulo que eu recusara.

A qualquer tempo, minha nora falava alto e bom som no “avô” do seu filho. O outro. A pequena trapaça que eu industriara voltava-se contra mim.

Ainda bem que o filho do meu filho percebeu logo toda a farsa. E reagia com inteligência e bom humor. Punha tempero quando contava a terceiros que tinha um avô e um pai-do-meu-pai. Divertia-se. Cresceu incólume, sem traumas.

No resto, eu cumpria o papel tradicional. Adorava brincar com o garoto, passear com ele, contar histórias. Enquanto isso, eu via outros avôs (diabo de língua) só ostentar o rótulo.

Nesse meio tempo, me distraí. E ele, o atento tempo, fazia das suas comigo. Levou meus orgulhosos cabelos, deixando-me calvo como um ovo. Fiquei com a cara de meu próprio… avô!

A careca luzidia e um profundo bigode chinês me dariam o papel de vilão em qualquer filme. Porque ressaltavam meu sobrecenho cerrado. Ou seja, meu avô, esculpido em carrara.

Por falar nisso, sujeito danado, o meu avô. Atrás de sua cara de mau, do seu autoritarismo irredutível e do moralismo férreo ele escondia um estroina: morreu enganando minha avó, trepado em cima de uma garota com idade para ser sua neta.

Entende-se que eu não quisesse me parecer como ele. Mas sou ele, sem tirar nem pôr! Justo eu, que mesmo manhoso não traio nem troco a minha patroa… Tenho certeza de que o tempo dá gargalhadas às minhas custas.

Eu resistia. Quando pude me aposentar, devido a um insidioso glaucoma, não quis. Não aceitei, finquei pé contra os anseios de minha mulher, fiquei injuriado. Aleguei para todo o mundo um orgulho, o de não querer ser inválido.

Mas a verdadeira razão de rejeitar o retiro é que aposentadoria era coisa de velho. Anos mais tarde, quando precisei da esmola que o Estado dá aos aposentados, não consegui. O sistema me glosou.

Intimamente, me alegrei. Era como um reconhecimento do meu viço, minha juventude. Mas eu já estava há tempos – o tempora, o mores! – no regimento eufemístico da terceira idade.

O tempo não parou de me fustigar com suas tiradas sem graça. Um dia, como se já não bastasse ter apenas 1m70 de altura, fui humilhado num consultório médico. A doutora declarou solenemente, antes de registrar na minha ficha: 1m66!

– Mas, como? – protestei o quanto permitiam minhas energias.

– Eu sempre tive 1m70! Pode ver no meu certificado de alistamento militar!

– É… – comentou a esculápia – o tempo passa, os anos sobem, nós encolhemos.

Ultimamente, eu ando mais calmo, mais sedentário. Pode ser da idade. Para matar o tempo, gosto de resolver equações matemáticas. Mas, exercício físico… no máximo eu me pego a girar os polegares, com as mãos cruzadas. Exatamente como fazia meu avô.

Talvez me falte companhia para atividades mais vitais. O meu net… o filho do meu filho pouco tem aparecido aqui em casa. A agenda dele anda repleta de baladas e noitadas com outros adolescentes. Especialmente garotas…

– Meu Deus! – eu me sobressalto. Tomara que essa molecada nunca esqueça de usar camisinha!

Já pensou? Que truque eu poderia usar para chamar o eventual filho do filho do meu filho?

 

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