Gerações

Seu Salvador, o contador de histórias

O avô da autora, português e confeiteiro, que alegrava as comemorações dos outros criando delícias inesquecíveis como suas histórias

► Um pouco mais de emoção fisgada da infância: seu Salvador, o contador de histórias. Lembro-me de meu avô já de cabelos ralos e brancos. Nas tardes de sol, ele segurava firme a minha mão e saíamos só os dois, passeando pelas ruas do bairro onde morávamos. Que momentos deliciosos!

Íamos andando e ele recordando de sua infância em Portugal e de seus pais que havia deixado do outro lado do oceano para nunca mais revê-los; da aldeia onde nascera e de suas vinhas carregadas de fruto docinho; das ruas de Lamego – na região do Douro, onde havia passado sua adolescência – e do santuário de Nossa Senhora dos Remédios, no alto da grande escadaria da velha cidade, cuja construção demorou mais de um século, e que todo setembro recebia uma romaria de fiéis e devotos, ele incluso.

Outras vezes, meu avô reproduzia as notícias do jornal ou descrevia em detalhes as viagens que fazia por meio dos livros. Jornais e livros eram os amigos de todas as suas horas livres de aposentado. Trabalhara por décadas, dedicado ao ofício de confeiteiro. Seu dia-a-dia era alegrar as comemorações dos outros produzindo delícias com suas mãos habilidosas e a ajuda de glacê, chocolate e cremes de todas as espécies. Ao encerrar suas atividades, já com idade avançada, buscou na leitura o preenchimento do vácuo das horas.

Nós tínhamos uma relação de carinho mútuo e muitos instantes inesquecíveis compartilhados. Ele me chamava de miss Pompéia, me considerava a mais bonita do bairro. Para mim, ele era o maior contador de estórias do mundo. Ainda hoje, ao me lembrar dessas tardes em que passeávamos juntos pelas ruas de braços dados, meu avô falando, eu ouvindo e viajando na memória dele, as lembranças brilham na minha mente e ofuscam meus olhos que reagem liberando água salgada de saudades.

Uma de minhas histórias prediletas era a que vovô contava sobre a compra das terras na Vila Pompéia. Numa manhã dos anos 1920 ou 1930, ele havia se deparado com uma propaganda que dizia que a Pompéia seria a “Suissa Paulista” – assim mesmo com dois ‘esses’ – referindo-se às terras tranquilas e paisagens exuberantes do país europeu distante. Ele mantinha guardado o anúncio, embalado em um papel branco. De tempos em tempos me mostrava todo orgulhoso, como que para comprovar que sua história era verdadeira.

De fato, seu orgulho tinha muito a ver com as construções que ele havia feito sobre essas terras. Eram cinco casas, uma ao lado da outra, com longos quintais, quase chegando ao outro lado do quarteirão. Uma era dele e de vovó e as outras quatro doara a cada um de seus filhos. Graças a essa proximidade de casas, eu, meus irmãos e primos fomos criados todos juntos, compartilhando brincadeiras e descobertas ao longo da infância e da adolescência.

Meu avô tinha por volta de 80 anos quando partiu. Não me lembro dele doente. Um dia, não mais acordou. Ficou lá, na cama que dividia com vovó. Simples assim. Até para morrer, ele foi um homem elegante, como sempre o considerei

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