Gerações

Vó Ade, parteira de 12.630 bebês

A vó de bochechas geladas, provavelmente a maior parteira da história do Brasil, cujo diário foi descoberto pelo neto escritor e jornalista

► Dona Adelaidinha, como ficou conhecida, fez o curso de parteira numa época em que as mulheres raramente se afastavam dos afazeres domésticos. Estudou em São Paulo entre 1919 e 1921 e retornou a Ribeirão Preto, onde os nascimentos invariavelmente eram acompanhados por parteiras e na maioria das vezes em domicílio.

Entre 1921 e 1966, quando se aposentou, após 45 anos de trabalho ininterrupto, Adelaidinha realizou mais de 12.630 partos, nas casas de clientes e no hospital da Santa Casa, onde trabalhou por décadas.

A base do livro “Adelaide – A história da parteira de 12.630 bebês”, que resgata a trajetória de Adelaide de Almeida Bellonzi, é um diário que ficou “perdido” por mais de 60 anos.

Minha avó começou a escrever um diário em janeiro de 1953 e seguiu algum tempo relatando como era seu cotidiano naquela época. Esses relatos, por si só, já são muito interessantes. A gente fica conhecendo uma Ribeirão Preto hoje quase que totalmente esquecida.

Mas, após alguns meses, a vó Ade resolve recordar episódios do passado, e o diário vira na prática um livro de memórias, com ela contando casos desde 1919, em São Paulo, passando pelas décadas seguintes até à de 1950. Como ela era uma católica fervorosa, muitos episódios se passam dentro de Igrejas, em especial a Catedral de São Sebastião do Ribeirão Preto, onde ela se casou em 1934.

A vó Ade ia fazer 67 anos quando eu nasci, em fins de 1965. Minhas recordações mais antigas são de meados da década de 1970, quando ela morava no sobrado da Avenida Independência. Uma velhota simpática, gorducha, baixinha e de cabelos brancos. E com as bochechas mais geladas que já beijei.

Na segunda metade dos anos 1970, eu morava a cerca de 15 quarteirões da casa dela, e costumava ir até lá de bicicleta. A vó Ade geralmente estava na sala, me recebia com um sorriso e insistia em se levantar. Com um metro e meio de altura e gordinha, já não era fácil, mas não havia como abraçar o neto sentada.

Dava-lhe um beijo estalado na bochecha, sempre gelada, recebia o meu e corria para a cozinha. Lá estava Mazé, uma cozinheira negra, velha e magra, com um sorriso inesquecível – abria a boca, quase sem dentes, e gargalhava gostoso.

Ia na geladeira matar a sede e depois sabia que no armário sempre – sempre – tinha um doce de compota. Quase sempre o meu preferido, o de abóbora. Às vezes, de cidra – que não gostava. Se estivéssemos no inverno, era na certa bananada. Estava, então, com uns 12 ou 13 anos.

Cerca de uma década depois, vó Ade, quase nonagenária, e tia Pola foram morar com minha família. Vó Ade já precisava de um andador para se locomover. Estava iniciando minha trajetória profissional como jornalista, saía de casa cedo e voltava tarde, às vezes entrava para almoçar correndo e saía correndo, depois de um beijo naquela bochecha gelada.

Nunca me passou pela cabeça que ali estava um verdadeiro baú de informações sobre nosso passado. Sabia que ela havia sido uma famosa parteira, lembrava da solenidade de 1980, na Câmara Municipal, mas não percebi que minha vovó querida fora protagonista de uma história tão rica que merecia ser compartilhada como os demais moradores de Ribeirão Preto. Um trabalho feito sob medida para um jornalista…

Tive ela ao meu lado por anos. Imagino, hoje, se tivesse lido o diário naqueles anos e pudesse conversar com ela, conseguir mais detalhes, aprofundar os relatos. Vó Ade, que em 1952 assustou-se com uma taquicardia e pensou que a morte poderia estar próxima, viveu até os 94 anos. Ao morrer, em 13 de agosto de 1993, morava em São Paulo, com a sua primogênita – a tia Olguinha.

Em 2001, minha mãe, Hebe, a filha do meio da vó Ade, também encerrou sua trajetória de vida. Ao desocupar seu apartamento, deparei-me com uma caixa repleta de cadernos e alguns envelopes com fotos e documentos. Uma rápida folheada esclareceu do que se travava – os cadernos de anotações de parto, que a família sempre soube existirem. Guardei com carinho, mas apenas os guardei.

Passada mais de uma década, em fins de 2014 reencontrei a caixa em uma arrumação em casa.. Decide olhar com mais atenção – imaginei que poderia encontrar um bom tema para uma reportagem. Quem sabe 100 anos de nascimento do primeiro bebê, algo assim.

Mas, entre os cadernos, um igual aos demais não era de anotações. Era o diário da vó Ade. O diário de uma Adelaide que nunca imaginei. Minha avó, aquela baixota de bochechas geladas, tinha sido uma guerreira. E a boa história a ser contada não é a da quantidade de bebês que ela trouxe ao mundo, mas de como ela fez isso.

No livro “Adelaide – A história da parteira de 12.630 bebês” compartilho com os descendentes do casal de portugueses João de Almeida e Joaquina Ferreira Estima e com Ribeirão Preto a história de uma mocinha muito vivaz e curiosa, que viveu de 1898 a 1994 e foi uma testemunha privilegiada de quase um século no Eldorado que os pais dela vieram buscar da distante Europa.

Capa do livro “Adelaide – A história da parteira de 12.630 bebês”, a vó Ade vista pelo neto
Capa do livro “Adelaide – A história da parteira de 12.630 bebês”, a vó Ade vista pelo neto

 

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