Gerações

Ana Luiza Trajano: “Avós são o lado doce da vida”

Ana Luiza se orgulha de ter sido a escolhida na família para receber as receitas da avó paterna

● Entrevista com a chef Ana Luiza Trajano

 

► “Aprendi com minhas avós a transmitir afeto pela comida”, diz a chef Ana Luiza Trajano, que tenta oferecer para seus filhos o mesmo tipo de alimentação que sempre recebeu delas. Em seus dois premiados livros de receita e no seu restaurante em São Paulo, o Brasil a Gosto, ela defende a gastronomia que herdou da matriarca cearense: “Minha vó me inspirou a lutar pela cozinha brasileira”.

Zuleide Rodrigues tem 98 anos. Depois de um pequeno contratempo de saúde, recebeu a visita da neta Ana Luiza e a primeira coisa que perguntou foi: “Será que sua tapioca está pronta?”. A chef diverte-se com a preocupação da avó: “Ela mal estava se aguentando, e ainda pensou na minha tapioca”. Desde criança é assim: mesmo morando em outra cidade, Ana Luiza sempre recebeu encomendas gastronômicas das avós, uma mineira e uma cearense.

Paulista de Franca, é orgulhosa de ter sido a escolhida na família para receber as receitas da sua avó paterna, a Zuleide, única das duas viva até hoje. Dela também ganhou força para lutar, com panelas, pelo potencial do seu próprio país, e assim conseguir ter luz própria em uma família de mulheres fortes e empreendedoras.

“Ver o orgulho dela de fazer as coisas do lugar dela, um lugar de seca profunda onde até hoje não chega carro, me fez questionar por que a culinária nossa era tão pouco valorizada frente a outras culinárias internacionais. Fez com que eu fizesse da culinária brasileira um projeto de vida”, diz a neta com emoção.

Os conselhos da avó
As experiências com as familiares mais velhas que produziam a própria alimentação a partir do que a terra oferece fez a cozinheira pensar no que come na própria casa. Ela aprendeu a dar prioridade maior a um passeio na feira do que ao supermercado: “A alimentação é a base de tudo”.

Ana Luiza admite até já ter dado preferência para conselhos das avós em relação aos pediatras: “Dei água e chás para meus filhos mesmo sem recomendação médica”. Ela orgulha-se: “Minha avó sabia usar os alimentos como remédios preventivos e nós, as crianças da família, sempre fomos muito fortes e raramente ficávamos doentes. Ela, com 98 anos, é uma fortaleza”. E completa: “Nossa geração precisa ouvir e aprender com as gerações mais velhas”.

 

A seguir, os principais trechos da entrevista com a neta Ana Luiza Trajano

 

O amor nas panelas Ana Luiza conta que as avós, uma mineira e uma cearense, a ensinaram a demonstrar afeto por meio da comida.

“Me sinto muito afortunada porque eu tive duas avós incríveis. Uma que me ensinou a questão de transmitir a afetividade através da comida, que é minha vó materna. Ela sempre levou café da manhã na cama com tudo que a gente mais gostava. O jeito dela de expressar afeto era através da comida. E a outra, que é minha avó cearense, que fez com que eu optasse ser cozinheira como profissão. Ela veio retirante do Nordeste e sempre fez questão de, mesmo ascendendo socialmente, ela sempre manteve seus hábitos culinários e sua raiz de identidade brasileira. Nunca teve vergonha, pelo contrário, sempre teve orgulho dessas raízes.”

 

A origem nas panelas O orgulho da avó Zuleide pelas suas receitas sertanejas levou Ana Luiza a fazer da culinária brasileira “um projeto de vida”.

“Ela me contava como eram feitos os produtos na época em que morava na fazenda: como fazia tapioca, carne de sol, o charque que ela sempre fez, enfim. Como fazia todos os processos e eu ficava muito encantada com os processos da cozinha brasileira, da cozinha sertaneja dela. Na verdade, ver o orgulho com que ela sempre fez as coisas de raiz dela, e vindo de um lugar de seca profunda em que até hoje não chega carro, me impulsionou a um questionamento que eu tenho, que eu nunca tinha entendido por que a culinária nossa era tão pouco valorizada frente às outras culinárias internacionais. Fez com que eu fizesse da culinária brasileira um projeto de vida e que eu contribuísse através da minha cozinha para a valorização da cozinha brasileira.”

 

Artista do sertão Ana Luiza conta como entendeu que cozinha tem a ver com cultura com sua avó sertaneja, que até hoje faz a própria paçoca e pamonha: “Digo que ela faz com mão de artista!”

“Por exemplo, se ela ia fazer carne de sol, ela tinha um senhorzinho que ela ia lá, eles colavam a manta. Eu sempre digo que ela era boa costureira e então eu falo que ela fazia com mão de artista, a manta que ela ia fazer. E abria toda aquela manta e no tempo em que ela ia abrindo ela me contava as histórias e então tinha aquela poesia por detrás do mantear a carne de sol. Não era só cozinhar. Era cozinha e cultura. Aquilo era aprender um pouco mais de nós mesmos, brasileiros, através da cozinha. Isso eu sempre achei muito bonito na minha vó. Mesmo com a pouca instrução e da onde veio, ela sempre foi muito solar e poética, uma artista, mesmo. Ela vem do sertão do Ceará, Jacopiara, hoje ela está com 98 anos e até hoje ela faz paçoca, pamonha e essas coisas da terra. Agora recentemente ela teve um contratempo de saúde e quando eu cheguei a preocupação dela era se a minha tapioca ia estar pronta pra eu comer. Ela não aguentando e a preocupação dela era essa!”

 

Viver do que a terra dá Das parentes mais velhas, Ana Luiza sempre recebeu bornais de comida artesanal. Segundo ela, é o segredo de saúde da vó Zuleide: “Com 98 anos, é uma fortaleza”.

“Minha vó renasce. Mesmo com a perda do meu pai, que foi o primogênito dela, depois ela renasce e hoje com 98 anos, vai fazer 99, e é uma fortaleza. Não toma remédio nenhum, porque ela sempre usufruiu dos remédios que a natureza dá. Ela sempre comeu comida que não era pasteurizada nem industrializada e sim feita, selecionada e produzida na própria fazenda. De outro lado, que é meu lado mineiro, por mais que minha vó tenha falecido quando eu tinha nove anos, minha tia-avó supriu essa figura e assumiu a gente como netos, já que não tinha filhos, minha mãe era como se fosse filha e eu sou a neta querida. A tia Luiza produz tudo. Até hoje chega ovo caipira aqui em casa, as compotas que ela faz, a linguiça que ela faz. Essa coisa da produção artesanal das coisas. Ela sabe que sou a que mais gosto, então ela manda couve, quiabo, linguiça. E até eu ter 16 anos mandava leite em casa. É que agora são 440 quilômetros. Mas é muito legal, o embornal sempre chegou em casa. Sempre ela manda caixas com o que a terra tá dando agora.”

 

Melhor presente Vó Zuleide não era muito de brincar com as crianças, mas para Ana Luiza estava ótimo: “O melhor presente que ela podia me dar era ensinar a cozinhar e deixar que eu cozinhasse”.

“A vovó não era muito de brincar. Era de dar comida pra agradar. Pra mim o mais forte da vovó na infância era a tapioca. Ela tinha dificuldade, não era a dela ficar interagindo, brincando. Ela cozinhava pra gente o que cada um gostava. Mandava paçoca, carne de sol. Eu gosto muito de comer e sempre pedi presentes a ver com isso. Com sete anos pedi lagosta porque no interior não tinha. Então pra mim o melhor presente que ela podia me dar era ensinar a cozinhar e deixar que eu cozinhasse. Desde criança eu escolhi minhas amigas também por tão bom cozinheiras eram as mães.”

 

Rodrigues não quebra um osso A cozinheira conta como aprendeu com a avó Zuleide a valorizar os alimentos como “remédios”: “Alimentação é a base de tudo”.

“Uma das coisas que era muito legal que a vovó falava assim: se algum amiguinho nosso quebrava um osso – porque a gente quebrava e cortava quando era pequena, a gente era muito atentada no interior, porque ficava muito na rua, apesar de que eu nunca quebrei nada – aí ela falava assim: “É Rodrigues, porque Rodrigues não quebra um osso, porque come tutano.” E aí, quando meu filho uma vez trincou um osso, ela falou: “Não tá dando tutano pro menino!”. Então ela tinha essa sabedoria de usar alimentos como remédio. É verdade, todos nós Rodrigues somos crianças muito saudáveis. E todos que permaneceram nessa alimentação que ela propunha, que meu pai sempre fez questão de manter essa alimentação na minha casa, e minha mãe sempre deu suporte, a gente não tinha nada, só tivemos umas doenças leves, a gente era crianças fortes.”

 

Conhecer os alimentos Ana Luiza dá dicas para repassar o que aprendeu com as avós sobre alimentação: “Parem de comprar produtos processados e vão à feira”.

“Eu acho que é tão importante quanto a escola que você coloca, você imprime o que a pessoa vai ser através da alimentação. Parece que é supérfluo nesse mundo que a gente vive hoje, mas é essencial. Você é o que você come. Parem de comprar bolo de pré-mistura e façam um bolo fresco, parem de comprar suco de caixinha e façam um suco natural, parem de comprar produtos processados e vão à feira. É uma oportunidade de fazer um passeio com as crianças, de elas conhecerem os alimentos.”

 

Conselhos da maturidade A chef conta de um conselho das avós que seguiu com seus filhos, apesar do pediatra ter recomendado o contrário: “Acho que tem muito o que aprender com as pessoas mais velhas”.

“Sempre dei: chá, água, que pediatra não deixa, né? Meus filhos, o que é muito legal, são crianças que pedem água. Hoje em dia as crianças só pedem suco ou refrigerante. Ela pedem: ‘mãe, estou com muita sede!’. Eu sei que não deixavam dar água, mas eu dava chá e dava água, desde pequenininhos. Eu nunca descartei, sempre gostei muito das avós, das pessoas mais velhas, das tias. Eu sempre gostei muito de aprender com elas. Acho que você tem que seguir uma linha, mas tem umas coisas que a gente não conta que tá fazendo, pra não levar bronca. Tipo água.”

 

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Elisabete Junqueira

Publicitária e jornalista, fundadora e editora do portal avosidade, avó de Mateus, Sofia, Rafael, Natalia, Andrew, Thomas e Cecilia Marie

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