Gerações

Coisa de cinema

● Dez filmes que impactaram a geração dos avós de hoje

No escurinho da sala de projeção, um dos mais famosos beijos do cinema, de 'Um homem, uma mulher', ilumina a tela

Me arrisco a dizer que vai uma geração e vem outra, e o cinema continua como um ótimo programa, atraindo multidões. Sem dúvida, temos hoje a possibilidade de assistir a filmes em muitas plataformas, e se pode ter em casa telas de TV de ótima qualidade. Mas a magia do cinema não tem igual. coisa

Encantamento, grandes heróis, paisagens incríveis, coisas inimagináveis, ah, e lindas histórias de amor. Tinha até uma expressão quando queríamos nos referir a algo extraordinário. Dizíamos: “coisa de cinema”.

Desta vez convidamos o avô Sérgio Vaz, habitual colaborador do portal avosidade, para nos auxiliar num trabalho que é especialidade dele: selecionar filmes que impactaram a geração dos atuais avós. Tarefa dura! Mas vejam que ele se saiu muito bem.

Antes de começar a nossa fantástica viagem pelo cinema, vou apresentar o autor dessa seleção. Sérgio Vaz é avô de Marina, personagem de vários textos que ele escreve. Ele é um experiente jornalista que trabalhou nos mais importantes jornais e revistas do país e hoje edita os sites “50 Anos de Textos” e “50 Anos de Filmes”.

Ele escolheu os filmes que mais impactaram a geração dos que hoje são avós. Os escolhidos, diz ele, não são necessariamente os melhores filmes, mas são os mais importantes. E cuidadosamente faz uma ressalva: “como toda lista, esta é incompleta e tem falhas”.

Modéstia dele. Agora vocês ficam com o texto do vovô Sérgio Vaz, que nos deu uma colher de chá abrindo para nós o seu precioso caderninho de anotações sobre essa arte. Vocês vão ver que ele nos preparou uma verdadeira “coisa de cinema”.

Os Incompreendidos

Filme de 1959, de François Truffaut, França. Título original: Les Quatre-Cents Coups. Com Jean-Pierre Léaud, Claire Maurier e Albert Rémy.

Em Paris, um garoto de 12 anos que não recebe a menor atenção da mãe e do padrasto comete pequenos furtos e começa a se aproximar da marginalidade (sinopse adaptada do iMDb e Cinéguide).

Foi o longa-metragem de estreia de um realizador que viria a ser um dos melhores e mais importantes de todos, François Truffaut. É a primeira parte de um conjunto de cinco filmes que acompanhariam, ao longo de 20 anos, de 1959 a 1979, a evolução de um mesmo personagem, Antoine Doinel – uma façanha sem par na História do cinema mundial.

Absoluto sucesso de crítica, no mundo inteiro, influenciaria muito do que o cinema faria depois de seu lançamento. Sobretudo, foi e continua sendo um dos filmes mais pessoais e mais confessionais que já foram feitos.

A história que François Truffaut conta no primeiro de seus parcos 21 longas-metragens é sua autobiografia. Escancarada. Sem disfarces. Sem piedade. Nenhum outro dos grandes mestres do cinema abriu sua intimidade mais íntima, se expôs tão claramente, tão abertamente, quanto François Truffaut neste filme.

Trailer:

Pra ouvir o belo tema musical do filme, acompanho os créditos iniciais:

Os Companheiros

Filme de 1963, de Mário Monicelli, Itália-França. Título original: I Compagni. Com Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Annie Girardot e Bernard Blier.

Um ex-professor de escola secundária (interpretado por Marcello Mastroianni) tenta organizar os operários que trabalham em condições desumanas em indústria têxtil no Norte da Itália, no final do século 19 (sinopse adaptada do IMDb).

Vi esse filme pela primeira vez (chequei agora no meu caderninho de criança e adolescente) no dia 8/8/65, no Cine Art-Palácio de Belo Horizonte. Depois vi de novo no dia 13, passada apenas uma semana. E de novo no dia 19/9, ainda no Art-Palácio, o que já é um indicativo interessantíssimo: eram raríssimos os filmes que ficavam tanto tempo em cartaz em Belo Horizonte naquela época.

Me lembro bem como o filme mexeu com os espectadores, um ano e pouco depois do golpe de 1964. As pessoas aplaudiam o discurso que o personagem de Marcello Mastroianni faz quase no final. Era uma reação pela emoção do filme, mas, claro, era também uma reação passional contra os milicos.

Trailer:

Dá para ouvir a canção que toca nos créditos iniciais:

Os reis do ié-ié-ié

Filme de 1964, de Richard Lester, Inglaterra. Título original: A Hard Day’s Night. Com John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr.

Em dois dias “típicos” da vida dos Beatles, no auge do fenômeno da beatlemania, os quatro rapazes se preparam para um show ao vivo na televisão (sinopse adaptada do IMDb).

É um filme engraçado, divertido, gostoso de se ver. É inteligente, esperto, safo. Irreverente, gozador, suavemente ousado. Tem alguma coisa dos filmes dos irmãos Marx, tem um tom do cinema novo inglês de seu tempo, dos Angry Young Men. Apesar disso, ou por isso mesmo, era inovador. Fresco, fresh, no sentido mais literal e mais puro.

Permanece com um gostinho de coisa nova mesmo agora, passados quase 60 anos de seu lançamento. É um espelho do fenômeno beatlemania, um produto dele – e ao mesmo tempo seu realimentador.

Ao redor do mundo todo, as pessoas o viam e reviam e reviam sem parar. Num país periférico, do Terceiro Mundo, um adolescente chamado Sérgio Vaz viu A Hard Day’s Night nove vezes, conforme anotou em seu caderno de filmes, entre março de 1965 e fevereiro de 1967.

Trailer:

E mais duas dicas da trilha sonora:

ou

Dr. Fantástico

Filme de Stanley Kubrick, Inglaterra-EUA, 1964. Título original: Dr. Strangelove Or: How I Learned To Stop Worrying and Love The Bomb. Com Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden.

No auge da Guerra Fria do início dos anos 1960, um general louco, com um ódio insano do comunismo, dá início a uma sequência de acontecimentos que leva as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, à beira da guerra atômica que extinguiria a vida na Terra (sinopse adaptada do IMDb).

Pertence a uma cepa rara – a dos filmes que, em vez de envelhecer, vão se demonstrando cada vez mais atuais, à medida que o tempo passa. O grande Roger Ebert escreveu: “Visto depois de 30 anos, Dr. Strangelove parece notavelmente fresco e sem data – uma sátira perspicaz, irreverente, perigosa”.

E ele escreveu isso há mais de dez anos. Muito antes de o planeta se vir às voltas com a crescente maré do populismo de extrema direita.

A gente constata a cada revisão que não é apenas um filme extraordinário que alerta sobre a iminência de um conflito de nuclear que aniquilaria todas as formas de vida no planeta. Ele é exatamente isso, sim, sem dúvida alguma.

Mas é mais. É um dos mais brilhantes, mais inteligentes e mais assustadores filmes que alertam para o perigo do fanatismo, da cegueira ideológica de gente como Donald Trump, Steve Bannon, Matteo Salvani, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro.

Trailer:

Para ouvir um pouco da trilha sonora:

Deus e o Diabo na Terra do Sol

Filme de Glauber Rocha, Brasil, 1964. Com Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos e Maurício do Valle.

No meio da seca e da miséria, no Nordeste do Brasil, um camponês pobre passa do domínio de um beato fanático ao de um cangaceiro (sinopse do Cinéguide).

Assim que chegou às telas dos cinemas, em 1964, exatamente o ano do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil, se revelou muito mais que um filme. Foi uma erupção vulcânica, um terremoto, o choque de um gigantesco meteorito, uma bomba atômica.

É barroco. Gongórico. Operístico. Tour de force. Exagerado, over do over. Suntuoso. Em alguns momentos – vários, a rigor –, chato de doer. Espetacular. Superlativo. É um filme superlativo.

Como observou um crítico francês, Glauber Rocha rompe com a estrutura narrativa tradicional – e, acrescento eu, foge do realismo feito o diabo da cruz, o vampiro do alho e do crucifixo. É tudo absolutamente estilizado. Como uma ópera.

Com alguns momentos em que os personagens fazem marcações fixas dentro do quadro como se fosse puro teatro, como se fosse uma tragédia grega num palco de anfiteatro. Não é a narrativa de uma história de pessoas reais – é muito mais uma fábula, uma parábola, uma grande metáfora.

Trailer:

Um trecho da trilha sonora, a sequência com as Bachianas Brasileiras número 5:

ou a trilha sonora original:

Fahrenheit 451

Filme de François Truffaut, Inglaterra, 1966. Com Oskar Werner e Julie Christie.

Em um futuro opressivo, não existem mais incêndios, e os bombeiros se dedicam a queimar livros, que são proibidos pelo regime autoritário. Um bombeiro fiel ao regime começa a ter dúvidas sobre se o que ele faz é certo (sinopse adaptada do IMDb).

O diretor François Truffaut não ligava muito para a política. É um dos pouquíssimos, raríssimos artistas europeus em atuação nos anos 1960 que não era socialista, comunista ou no mínimo simpatizante da causa.

Mas tinha paixão pelos livros. Era um apaixonado por livros, por filmes, por mulheres e pela paixão, não sei exatamente em que ordem. Praticamente todos os seus filmes ou baseiam-se em livros ou falam de livros, mostram livros, comentam livros. Não poderia imaginar um mundo regido por um Estado totalitário em que os livros fossem proibidos.

Tem absolutamente toda a lógica ele ter se decidido a levar para o cinema o livro de Ray Bradbury sobre aquele futuro apavorante, em que a Resistência contra o regime é exercida por pessoas que decoraram os livros, e os vão passando oralmente para os filhos, os sobrinhos, os netos.

Trailer:

Para ouvir um pouco da trilha sonora:

https://www.youtube.com/watch?v=RfUd_EAn-a4

Um Homem, Uma Mulher

Filme de Claude Lelouch, França, 1966. Título original: Um Homme et une Femme. Com Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée.

“Um homem e uma mulher, ambos viúvos, se conhecem e se apaixonam” (sinopse do Cinéguide).

É só um fiapinho de história, como bem mostra a sinopse. E uma história absolutamente comum, sobre duas pessoas comuns, “normais” (se é que alguém pode ser chamado de normal), sem nada, nada de extraordinário.

Dois atores competentíssimos, simpáticos, belos, aí na faixa dos 30 e tantos anos; uma câmara que faz belíssimos movimentos; uma mistura de sequências em cores e em maravilhoso preto-e-branco; uma trilha sonora apaixonante, com um tema simples e gostoso, daqueles que grudam na cabeça da gente como chiclete.

E pronto: o filme conseguiu a façanha raríssima de vencer ao mesmo tempo o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo. E se tornou um espetacular sucesso de público. Em São Paulo, bateu recordes, ficou mais de um ano em cartaz.

O diretor Lelouch faria seus personagens se reencontrarem duas décadas mais tarde, em Um Homem, Uma Mulher: 20 Anos Depois (1986), e novamente, já velhinhos, em Os Melhores Anos de Uma Vida (2019).

Trailer:

E a inesquecível trilha sonora:

Todas as Mulheres do Mundo

Filme de Domingos Oliveira, Brasil, 1967. Com Leila Diniz, Paulo José, Ivan de Albuquerque e Flávio Migliaccio.

Na Zona Sul do Rio de Janeiro, rapaz bonitão, simpático (Paulo José), namora todas as mulheres que passam pela sua frente – até que conhece Maria Alice (Leila Diniz), apaixona-se perdidamente e tem que escolher entre ela e metade da humanidade. (sinopse adaptada do IMDb).

Em pleno início da ditadura militar, enquanto praticamente todos os filmes brasileiros denunciavam as mazelas e a injustiça social do país como forma de combater o governo de direita, Domingos de Oliveira remou contra a maré e fez uma comédia romântica.

Que é a mais bela e arrebatada declaração de amor feita no cinema a uma mulher – Leila Diniz, aquela mulher esplendorosa, maravilhosa, que passou entre nós como um cometa e foi embora cedo demais.

Não é apenas um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. É um dos melhores filmes de todos os tempos.

E é impressionante como o filme resiste intacto ao teste do tempo. Quatro décadas depois, ele mantém o frescor, o brilho, a inteligência, a beleza, a criatividade transbordante.

Não é à toa que inspirou uma série da Rede Globo recentemente, em 2020.

Trilha sonora (Pavane, de Fauré):

Sem Destino

Filme de Dennis Hopper, EUA, 1969. Título original: Easy Rider. Com Peter Fonda (Wyatt, o Capitão América), Dennis Hopper (Billy) e Jack Nicholson (George Hanson).

Dois motociclistas atravessam metade dos Estados Unidos, de Los Angeles até Nova Orleans, passando por colônias de hippies e por cidades em que eram hostilizados por causa de suas roupas e maneiras pouco convencionais (sinopse adaptada do Cinéguide).

Em 1969, um filme sobre motocicletas de baixo orçamento mudou para sempre a forma em que a América olha para si mesma e a maneira com que os filmes redefinem a cultura.

Essa afirmação abre um documentário de pouco mais de uma hora de duração sobre Sem Destino, chamado “Easy Rider: Shaking the Cage”. Pode parecer um exagero – mas não é.

O filme tem imensa importância, sim, sem dúvida alguma. Foi um marco fundamental. Foi o filme que mostrou escancaradamente, pela primeira vez, a vida dos hippies, a forma com que viviam as pessoas que tinham resolvido abandonar o american way-of-life para procurar alguma coisa mais satisfatória, mais plena.

Fiquei com a sensação, depois de terminar de rever o filme, 50 anos depois de seu lançamento, que Easy Rider está para o cinema americano como Hair está para o teatro da Broadway – e como Woodstock está para a cultura, para a História de uma maneira geral. Easy Rider,

Hair e Woodstock foram os grandes marcos da presença forte da contracultura, do hippie way-of-life.

Trailer:

Podemos ouvir aqui um pouco da trilha sonora:

ou

A Confissão

Filme de Costa-Gavras, França-Itália, 1970. Título original: L’Aveu. Com Yves Montand, Simone Signoret, Gabriele Ferzetti, Michel Vitold e Jean Bouise.

Em Praga, em 1951 – a época dos julgamentos dos ex-camaradas que por algum motivo passaram a ser considerados inimigos do regime comunista –, um vice-ministro (o papel de Yves Montand) é preso e violentamente torturado para confessar crimes contra a pátria que não cometeu (sinopse adaptada do Cinéguide).

Nem mesmo Franz Kafka seria capaz de criar essa história de tamanho absurdo kafkiano que viria a acontecer de verdade ali mesmo, na sua cidade natal, a bela Praga, e que Costa-Gavras, Monsieur Cinéma Politique, transformou em um filme em tudo por tudo extraordinário, eletrizante, importantíssimo, em 1970.

George Orwell, Aldous Huxley ou Ray Bradbury também não conseguiriam construir uma trama de distopia tão apavorante, tão cruel, tão desumana, quanto a história real conduzida na Checoslováquia do início dos anos 1950 pelo governo e pelo Partido Comunista checo, sob as ordens da União Soviética de Stálin.

Na época em que foi lançado, 1970, foi um furor, um choque, uma bomba atômica: como assim, esse formidável time de gente esquerdista, o cineasta greco-francês Constantin Costa-Gavras, o casal 20 da esquerda francesa Yves Montand-Simone Signoret, e mais o comunista espanhol Jorge Semprun, unidos num filme que mostra tortura num regime comunista? Traição, traição, traição! Estão se vendendo para o imperialismo! Abandonaram a defesa do povo, a construção do socialismo!

Costa-Gavras, Montand, Simone Signoret e Semprun, ao contrário de lulistas e bolsonaristas, não têm ditadores favoritos.

Trailer:

A trilha sonora pode ser degustada aqui:

Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Coisa de cinema. Pois. Então. Pois. 

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Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. .Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então.
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É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi. É. Oi.
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Elisabete Junqueira

Publicitária e jornalista, fundadora e editora do portal avosidade, avó de Mateus, Sofia, Rafael, Natalia, Andrew, Thomas e Cecilia Marie

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