Gerações

Ir além, um conto em forma de diário

Pouco mais de sete meses de diário se transformam em conto para alcançar todos aqueles que possam verdadeiramente escutá-lo…

 A necessidade de viver cada dia indo além de si mesmo

 Esta é a fiel reprodução do diário de Marcelo Soares Vieira, no período de 30 de julho de 2016 a 03 de março de 2017. além

Dia 30 de julho de 2016 além

Caro diário,

Hoje aconteceu algo tão extraordinário que eu preciso escrever, para ficar bem registrado.

O toque do meu WhatsApp era inconfundível. Ronaldo Pimenta, meu amigo desde que me entendo por gente, havia mandado umas oito mensagens:

– Marcelo, dizia ele – como se precisasse digitar o meu nome…

Ronaldo era assim, dava para perceber seu desespero até pelo “zap”.

Tudo começou há algum tempo.

Como você sabe, diário, há uns seis meses, pelo menos, Ronaldo não sai de casa para nada. O máximo que ele faz é ficar teclando, reclamando da vida. Longe de mim querer criticá-lo. Sua situação é calamitosa.

Do nada, sem que ninguém soubesse o porquê, ele não pôde mais andar. Suas pernas não lhe obedeciam. Disseram que era uma dessas doenças – não consigo agora me lembrar o nome – raras, incapacitantes, e sem cura. Tentaram de tudo. Não houve melhora. A última providência foi uma cadeira de rodas. Ela entrou pelo quarto adentro, sem pedir licença.

Mas o Pimenta não quis saber dela. Na cama estava, e lá ficou. Sua mãe fez de tudo um pouco, mas… meu amigo se recusava a participar da vida. Nada de jogos, de festas, de futebol – ah, o futebol! As lágrimas rolavam em sua face, e eu ficava parado, feito um boneco, sem saber o que fazer.

– Colégio? Nem pensar! Para que?! exclamava Ronaldo.

Mas agora a mensagem do “zap” me dizia:

– “Marcelo, venha, venha logo. Chegou um vizinho estranho, muito estranho. Estou espiando pela janela. Ele é cego!”

Praticamente saí em disparada. Não por causa do vizinho, claro, que eu nem conhecia, mas pela reação de meu amigo, que pela primeira vez parecia sair de seu total isolamento.

Vou ter que parar agora. Amanhã continuo.

Dia 31 de julho de 2016 além

Diário, tento ser o mais fiel possível, embora nem sempre consiga escrever tudo em um único dia.

Ontem, mal bati na porta da casa de Ronaldo, e Dona Zilda, a mãe dele, a escancarou, me olhando como se eu fosse o salvador da pátria. Só fiz um sinal com a cabeça e corri para o quarto do meu amigo.

– Até que enfim, resmungou ele – Veja. Chegou um vizinho novo aí em frente. Estou de olho nele desde cedo. Ele é cego, Marcelo, mas nem parece que se importa com isso! Você está ouvindo essa música? Não tem lógica!

Tentei entender o que ele dizia, mas confesso que as ideias se embaralharam. O que tinha demais o cego e a música?

– Você acha que ele é feliz? Finja, Marcelo, finja, que vou acreditar! Feliz como?!

– Quem? pergunto, meio boquiaberto.

– O vizinho, Marcelo, o vizinho. Ouça a música.

E foi aí que escutei. Linda! Daquelas maravilhosas, que nos preenchem por inteiro, e que a gente não esquece mais.

– Feliz? balbuciei, ainda confuso – Sim… é possível…!

Tateando além

Ronaldo pareceu nem me escutar. Com um desses binóculos de última geração, sentado na cama, e meio desengonçado, ele tentava vasculhar a casa do vizinho. Sem graça, pensei em dizer que isso não era nem um pouco educado, mas meu amigo, sem me dar a mínima, tentava ver sei lá o quê na casa em frente.

– Veja, veja, disse, me empurrando o binóculo.

Espiei, meio constrangido, e… o que? Não… não vi nada de mais. Quer dizer, vi um garoto, mais ou menos de nossa idade, tateando pela sala com uma bengala, como a se familiarizar com o ambiente. Mas seus passos eram seguros. E parecia totalmente tranquilo. Alguma coisa ali me tocou profundamente. Deixei o binóculo na cama e saí, sem dizer uma única palavra.

A música ressoava ao fundo.

Dia 04 de agosto de 2016

Meu caro diário, ontem cheguei atrasado à aula de geografia. O professor me olhou de lado, como se eu me atrasasse todos os dias, e assim, meio em câmara lenta, eu o escutei dizer:

– Marcelo, esse é o Rafael, o novo membro da turma.

Só faltava essa! Era o vizinho do Pimenta.

Sorrindo, ele me diz: – Prazer. Rafael.

Olho para ele, sem saber o que fazer. Eu… o que vou dizer?

Finalmente, escuto minha voz, como se viesse de outra pessoa.

– Prazer… Marcelo…

Percebo que estou totalmente sem jeito. Ele, porém, parece perfeitamente à vontade.

Aliás… qualquer um pensaria que Rafael sempre estivera ali.

Dia 18 de agosto de 2016

Vejo que pulei alguns dias, meu diário. Mas, é que tudo se passou com tanta velocidade que só agora pude parar e te contar.

Enquanto eu ainda tentava me adaptar ao Rafael, ele já se tornara o centro das atenções. Não por querer se destacar, mas por algo que eu ainda não conhecia.

Então tive uma daquelas ideias fantásticas: e se eu o levasse para conhecer o Pimenta? Sim, era isso!

Até hoje não sei como é que as coisas se sucederam, de fato, mas lá estávamos nós.

– Bom dia, Dona Zilda. Podemos falar com o Ronaldo?

Compreensivelmente surpresa, ela abre inteiramente a porta.

– Claro, entrem, entrem. Fiquem à vontade.

– Este é o Rafael, o novo rapaz da escola, digo… o seu…

– Sim, sim, o vizinho. Prazer. Zilda, mãe do Ronaldo. Mas, entrem, entrem.

Atravessamos a sala, entramos no quarto do meu amigo, e vou dizendo:

– Pimenta, este é o Rafael. Rafael, Pimenta.

Ronaldo, com os olhos arregalados, mal se recupera do susto. Por essa ele não esperava, tenho certeza!

Dia 25 de agosto de 2016

Caro diário, faz uma semana que não escrevo. Os dias passam tão rápido, não é?! Mas algo extraordinário está acontecendo! Preciso lhe dizer: Ronaldo já não é o mesmo!

Há uns três dias, veio a mensagem:

– “Marcelo, será que você poderia me ajudar com essa cadeira?”

Quase pulo de tanta alegria. Cadeira? Seria a cadeira de rodas? Saio correndo e, em poucos minutos, chego, esbaforido, em sua casa.

Ronaldo se apoia em mim, estende cuidadosamente uma perna… a outra… e, triunfante, senta na cadeira.

– Vamos? ele diz.

Sorrio, como se fizéssemos isso todos os dias.

E saio pela rua afora empurrando o Ronaldo.

Dia 13 de setembro de 2016

Meu querido diário,

No meio do campo, estávamos nós três: eu, Pimenta e o Rafael.

– Se você não vê nada, o que vê da vida? pergunta Ronaldo.

– Tudo! responde Rafael. Sinto o vento, vejo pelo cheiro, escuto a sua voz…

Não sei de quem surgiu a ideia, não sei mesmo. Poderiam nos chamar de os três trapalhões. Mas aquela era uma experiência inédita.

Na cadeira, o Pimenta; Rafael, empurrando; e eu, logo atrás. Nem uma única palavra saía de minha boca.

– Já! diz Ronaldo. E depois grita: em frente! E então, juntos, praticamente voamos pelo campo aberto.

Rafael era as pernas de Ronaldo, Ronaldo era os olhos de Rafael, e eu chorava de alegria!

Não foi um momento único, porque o repetimos por muitos e muitos dias.

Dia 29 de novembro de 2016 além

Olá, faz tempo que não nos falamos! Você já não é mais um diário, mas eu também não sou mais o mesmo. Ontem, Ronaldo retornou às aulas. Sozinho, girando a sua cadeira de rodas…

Hoje não vejo Rafael na carteira ao lado. Olho para Ronaldo, e nem sequer penso em perguntar por Rafael. Tínhamos essa cumplicidade que não precisa de palavras. Aliás, falávamos cada vez menos nos últimos dias. Era como se todos nós soubéssemos que sua partida estava próxima. E, afinal, para quê despedidas, quando o coração é um só?!

Repentinamente, ele se mudou. Chegou e partiu como um magnífico cometa. Mas deixou a marca da maravilhosa melodia de seu exemplo de vida.

– Marcelo? De repente, me pergunta Ronaldo – Será que você poderia escrever uma história sobre Rafael? Você poderia contá-la para outras pessoas?

Mudo, eu o olho, e sinto que meu coração está em festa. A história de Rafael? Não seria também a história dele, Pimenta? E a história de tantos e tantos outros?

Sei que não escrevi tudo que poderia escrever. Como falar do riso, da alegria, do amor, do doar-se? Rafael é como uma maravilhosa canção! Um brilho do sol. Um grito de Liberdade, Liberdade maior do que tudo o que existe. Ele espalha essa melodia por onde passa, a melodia de um outro estado de consciência.

Ronaldo Pimenta também é outro, totalmente diferente! Não reclama da vida.

Vive cada dia como que indo além de si mesmo.

Além de si mesmo? Sim, talvez seja esta a chave…!

Dia 03 de março de 2017

Querido diário, hoje você se transformou num conto. Espero que alcance a muitos e muitos e, em especial, a todos aqueles que possam verdadeiramente escutá-lo…

E agora, sobre a autora

Elaine Bastos Mayworm, sobre si mesma: aposentada, amante da leitura e da escrita, há seis anos diagnosticada com esclerose múltipla, uma dessas doenças raras, progressivas, incapacitantes e, por enquanto, sem cura.

No entanto, ainda posso andar, ainda posso ver, ainda posso escrever, ainda… tanto a fazer! Recentemente resolvi “falar” que essa “doença” me acompanha. Ela sou eu? Eu sou ela? Certamente que não!

E ao vê-la assim, ao colocar essa doença no seu devido lugar, sem menosprezá-la, mas também sem a colocar em um pedestal, dando a cada dia o que tem que ser dado, surgiu, após o incentivo de um novo e especial amigo, a necessidade de escrever este conto.

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2 Comentários

  1. Adorei o conto/diário de Elaine Bastos Mayworm. Mas, mais do que o conto, eu adorei conhecer o pouco que Elaine falou sobre ela. Escreva sua história, Elaine. Será ainda mais interessante que esse conto. Compartilhe seus sentimentos, seus desafios diários, suas vitórias. Vá em frente! Beijo

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