Gerações

Memória dos sabores de uma infância entre avós com sotaque italiano

Jornalista Caco de Paula

►  Vitória usava uma pequena vassoura para retirar as brasas do forno antes de pôr para assar os rolinhos de massa branca que, logo depois, deixariam no ar um perfume do qual jamais me esquecerei. Pouco mais tarde, quando ela abria o forno, revelava-se o que me parecia ser uma espécie de mágica: aqueles bolinhos moles haviam se transformado em grandes e macios pães de casca morena e fina, que ela cortava em fatias, sobre as quais a manteiga derretia. Para mim, aqueles eram dias de café com leite, mas lembro-me de Antônio discretamente bebendo algo mais forte. Talvez um vermute.

Quando se casaram, Vitória tinha 16 anos e Antonio, 22. Ambos eram da primeira geração de brasileiros, filhos de famílias italianas que saíram do Vêneto nas últimas décadas do século 19. Vinham de uma região onde um em cada três habitantes fugiu da crise e da fome em busca de nova vida. Muitos deles desembarcaram no Brasil para trabalhar em fazendas de café, no interior de São Paulo. Antônio e Vitória viveram numa espécie de hiato cultural, tão comum às primeiras gerações de filhos de imigrantes. Tiveram de dar uma volta completa no parafuso. De um lado, saudades de um lugar que só conheciam pela memória dos pais. Ainda tão italianos, já tão brasileiros. De outro, assombro com a realidade crua, a constatação de que seus pés tocavam estas terras, seus olhos viam estes céus, seus corpos sentiam estas chuvas.

Ainda nem tão brasileiros e já não tão mais italianos. Essa é uma imagem que faço deles agora. Mas eles não devem ter tido tempo para pensar nisso. Tinham muito mais o que fazer. Criaram dez filhos, aos quais deram os nomes de José, Maurício, Romilda, Maria, Luzia, Aparecida, Cecília, Beatriz, Roberto, Antônia. Talvez hoje eu os compreenda melhor do que na época em que convivi com eles. Quando criança, não entendia direito por que meus avós maternos tinham tanta dificuldade para falar corretamente o português, língua que qualquer criança da minha escola falava melhor do que eles. Quanta ingenuidade de minha parte. Diante de alguma traquinagem dos muitos netos em torno dela, Vitória dizia: “Ma non, caro”. Severa e doce como uma avó, melodiosa como alguma canção veneziana que devia vibrar em seu coração.

Pensei muito nisso quando estive pela primeira vez em Rovigo,de onde Giuseppe Bedetti, o pai de Antônio, partiu quando tinha 9 anos. Lá visitei uma igreja onde uma pintura do século 18 retrata uma madona que é a cara de minha sobrinha Luciana. Há anjos com o rosto da tia Cidica, ou o sorriso da tia Toninha. Rovigo fica em uma planície cortada pelo rio Pó. Antes de desaguar no Mar Adriático, o Pó fertiliza as terras de uma região conhecida como Polesine, de onde vem um dos sobrenomes de Vitória, Polesinani. Não encontrei no Vêneto o mesmo pão da minha infância. Mas quando provei o risoto e a polenta me senti em casa. Giuseppe viu o mesmo céu que estou vendo agora. Sentiu a mesma tarde fria. Giuseppe, Vitória e Antônio, muito obrigado por me trazerem até aqui e, de certa forma, por estarem comigo neste exato momento.

 

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Um Comentário

  1. Olá, Caco! Encontrei seu artigo em uma pesquisa sobre minha descendência italiana. Meu tataravô tbem tem sobrenome Poleziani, nossa família é de Gavello, na província de Rogivo. Fiquei feliz por sua escrita.
    Grande abraço.

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