► Meu avô era antes de tudo o meu melhor amigo. Amigo mesmo, daqueles que dá conselho, que dá bronca, que pensa no melhor para você com a constância e o afeto caraterísticos das amizades verdadeiras. Alfredo
É muito difícil perder um amigão desses. E confesso que eu nem sempre fui capaz de corresponder a tamanha amizade, atenção e afeto.
No dia 14 de abril deste ano meu amigão seu foi – incrivelmente, no exato mesmo dia que minha bisavó Tereza, mãe de meu avô, quase vinte anos atrás, também se foi.
“– Vôzão, sua mãe veio te buscar”, eu diria com a mão em sua testa, se me fosse assim permitido no momento de sua passagem nesse duro momento de isolamento em que nossos anciões se vão, nem sempre de uma forma assistida e com a família como gostaríamos e esperaríamos.
Em outros tempos muitos de seus alunos, pupilos, orientandos, amigos e entes queridos estariam ao seu redor no leito de passagem do mestre. Segundo meu avô ele teria lecionado para quase quinze mil pessoas ao longo de uma vida dedicada às humanidades, à justiça social e à Deus:
“– Uma palavra de sabedoria, um conselho…”, pediriam, “uma palavra sobre tal autor”, “o que o professor acha do momento histórico do país?”, “fale sobre Aristóteles, Da Vinci, Vico, Machado, Luiz Gama, Mariátegui…”
Para cada pergunta, meu avô inclinaria um pouco a cabeça e fecharia seus olhos brevemente, como que consultando algum tipo de biblioteca secreta – o que faria de fato – consultado sua inimaginável e riquíssima biblioteca mental.
Então abriria os olhos e nesse momento qualquer um que estivesse no recinto saberia pelo brilho no olhar de meu avô que algo mágico viria: suas palavras começariam a sair e iriam nos conduzir pela mão pelos corredores do conhecimento.
Monge do conhecimento
Palavras escolhidas uma a uma por um joalheiro das ideias e da semântica – hábeis, generosas e sedutoras, cada uma, uma janela ou uma porta que daria para um salão ainda maior, ou abririam os caminhos para um jardim de mil flores primaveris e maçãs douradas.
Seu pensamento não era labiríntico. Pelo contrário, era um passeio por caminhos e trilhas do pensamento, com começo, meio e fim, e a melhor parte: o fim era um lugar maravilhoso que só quem seguisse o caminho todo atentamente poderia desfrutar.
O fim, muitas vezes era o começo – e o sentido de sua retorica era muitas vezes um círculo virtuoso.
Meu avô era um monge do conhecimento, e por ser monge suas maiores virtudes eram justamente a paciência e a tenacidade que tinha fruto desse tesouro enorme que carregava: sua própria mente.
Ele me ensinou que a palavra “paciência” ou a virtude da longanimidade vem do grego: makrothumia – makro (longo/ grande); thumia (temperamento); e que significa ter espírito “paciencioso” ou “que não perde o ânimo”.
É o oposto do temperamento irritado, impaciente e que se frustra facilmente.
Mas aqui, se eu me delongasse a falar desse lado do meu avô, um “monge do saber”, eu estaria apenas “chovendo no molhado”, tecendo elogios ao meu avô em sua potência de pensamento que se faz verbo e ação.
Porém outros já falaram e poderão falar disso – com muito mais capacidade e propriedade.
Neto e afilhado
Na condição de neto, amigo e também afilhado (pois ele também era meu padrinho de batismo), admirei muito os voos de sua mente, mas tive a possibilidade também de conhecer os picos e grutas de seu coração.
Muitas vezes, estudando sobre outros autores e intelectuais na história, nos deparamos com personalidades que nos seduzem por sua genialidade e brilhantismo, mas nem sempre tais virtudes vêm acompanhadas por uma vida que se traduza com a mesma luz nas relações humanas de afeto, amizade e companheirismo.
As mãos de meus avós escreveram muitas páginas e datilografaram manuscritos inteiros de saberes múltiplos, mas após um dia longo de trabalho, as mesmas mãos que enriqueciam o mundo de saberes se encontravam e se entrelaçavam afetuosamente para um passeio casual: com mesma ternura dos dois jovens namorados que foram um dia (e continuaram sendo) e passaram cinquenta e sete anos com as mãos dadas no impreterível passeio vespertino diário.
Ex digito gigas: é pelo dedo que se conhece o gigante. Grandes intelectuais são feitos de pequenos gestos.
A passagem de minha vô Eclea, quatro anos atrás, abalou enormemente meu avô, e não seria por menos: um era parte do outro. Quando minha vó se foi, uma parte da essência de meu avô se foi junto dela.
Seria impossível falar de meu avô sem falar de minha avó. Como disse Frei Betto, após a morte de minha avó, meu avô “demitiu-se da vida”, e, em parte ele tem razão.
Grande parte da vida intelectual privilegiada que meu avô teve esteve em função de uma vida afetiva tão rica ao lado de minha avó e da família, e da forma simples que levava sua existência: sem luxos excessivos e sem nunca desejar mais do que se poderia ter.
Manhãs frias
Lembro que meu avô já era um autor consagrado, professor universitário e naquela época dos idos dos anos 1990 levava eu e meu irmão para a escola em seu velho Monza.
Lembro que em várias ocasiões, bem cedo na região da Granja Vianna, onde morava, uma fina camada de gelo cobria o capô do Monza azul, fazia um frio de lascar. Uma hora antes meu avô já tinha que estar de pé esquentando o motor do carro, que funcionava a álcool e não pegava com facilidade.
Às vezes atrasávamos na escola pois o Monza estava “de birra”, mas meu avô nunca perdia a calma, a ternura e sua inesgotável paciência. “Tudo há de dar certo”, ele dizia.
Quantas e quantas vezes eu invadia seu escritório largo e arejado tentando fazê-lo trocar seus papéis e livros por alguma brincadeira.
E na maioria dos casos ele não hesitava: deixava os papeis de lado para me embalar na rede da varanda e contar histórias, se fantasiar de São Francisco, ou de pirata, cavar buracos para enterrar tesouros, falar do passado e do futuro e assistir televisão comigo.
Adorava me levar no Parque da Mônica, e íamos juntos ao meu lugar favorito: A Casa do Louco. Lá eu fingia que era o Louco e designava meu avô para ser o Cebolinha obrigando assim um imortal da Academia Brasileira de Letras a trocar os “erres” pelos “eles”.
Meu vô também passava tardes comigo falando de mundos antigos, dos gregos e egípcios, do mito da cidade perdida de Atlântida e de países e impérios que não existem mais.
Hoje, vejo que naqueles momentos preciosos que passamos juntos o seu eu intelectual se misturava com a criança que existia dentro dele e nós virávamos dois moleques brincalhões inventando mil histórias e estripulias.
Nenê da Barra Funda
Na várzea do Tietê na Barra Funda, onde meu avô nasceu, seu apelido foi Nenê durante sua infância. Tenho certeza que eu brinquei muito com Nenê nessa vida e passamos tardes inteiras fazendo as mais diversas reinações.
Acredito que meu avô foi o grande intelectual que ele foi porque nunca perdeu a ternura de uma criança. E o que muitos julgariam como um intelectual perdendo seu valioso tempo de trabalho pintando o sete, eu entendo como uma forma de alimento para sua alma.
Alma essa que está imbricada com o saber, com o verdadeiro conhecimento: a experiência humana em sua totalidade. Os intelectuais da “torre de marfim” que são muito sabidos sobre Deus e o mundo, muitas vezes se preocupam unicamente em alimentar suas mentes com livros e ideias e pouco nutrem a alma e o espírito.
Acredito que o conhecimento também tem alma: também carrega a história de vida, a potência do ser a essência do autor. Existem milhares de livros, cheios de palavras, ideias, argumentações – mas desprovidos de alma.
Tudo que meu avô escrevia era imantado pelo seu espírito e isso era seu grande diferencial. Que fez sua obra inquebrantável.
O meu maior privilégio foi poder conviver com esse lado do meu avô que poucos puderam conhecer e entender o quanto esse lado preenchia de sentido toda a sua existência: como intelectual, como marido, como pai, como avô – como ser.
Um dia meu avô me deu um trecho da bíblia em inglês: “– quero que você traduza isso, meu netão”, disse ele, em tom de mistério.
Livros preciosos
Reproduzo parte da minha tradução de neto, de Coríntios 13: 1-13
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver o amor, sou como um bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver o amor, nada seria.
(…)
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido.
Por ora subsistem a fé, a esperança e o amor – os três. Porém, o maior deles é o amor.
Meu avô pediu para eu imprimir minha tradução completa e afixou a folha na porta da estante em que guardava seus livros mais preciosos: Kant, Hegel e a Bíblia Sagrada.
Coração de menino
Um dia talvez conseguirei ler a obra completa desses autores e as escrituras sagradas, mas hoje quero pensar que meu avô me legou algo muito mais precioso que todos os tomos e manuscritos do conhecimento: meu avô me ensinou que para ser homem é importante ter também um coração de menino – que devemos superar o pensamento pueril, como diz o versículo, mas guardar o coração de criança.
E às vezes penso comigo que mesmo quando a fé e a esperança estremecem em mim o amor que um avô teve por um neto já é motivo o suficiente para sorrirmos e acreditarmos que novos dias virão.
Que meu avô-criança, o meu amigo Nenê da Barra Funda também existe em mim. E que mesmo quando a vida parece sem rumo ou estagnada, o velho Monza azul uma hora pega.
Foi o que meu amigo Alfredo Bosi me ensinou.
Então. Alfredo. Pois. Alfredo. Então. Alfredo. Então. Alfredo. Pois. Alfredo. Então. Alfredo. Pois. Alfredo.
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