Gerações

Meu avô Alceu

Xikito com o avô Alceu Amoroso Lima, a avó Maria Teresa e a tia religiosa

► Vivi agudamente a condição de neto, e nos 30 anos subsequentes à morte do avô os sentimentos ligados a ele intensificaram-se. Precisei lavrar 400 páginas de um livro e ainda assim faltou espaço para reproduzir o tanto que aprendi e os deslumbramentos que experimentei na companhia de meu avô materno. Agora, no polo ativo da avosidade, surge-me no âmbito familiar em maio uma pequerrucha em fraldas que magnetiza a atenção de todos a sua volta.

A ideia de escrever a biografia de Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, brotou de um desses pequenos milagres que vão surgindo no cotidiano. Certa feita ouvi de Dom Timoteo Amoroso Anastácio (1910-1993), antigo abade de São Bento na Bahia, a ideia de que milagres não vêm necessariamente em versão espetacular, por exemplo, o Mar Vermelho abrir-se para a passagem do povo, isso é mais coisa de cinema. Não há necessidade de alteração na ordem do Universo para que se dê o extraordinário. Ao beneditino interessavam antes manifestações ocorridas no aparente rame-rame das coisas. Pois ao olhar em retrospectiva encontro uma instancia dessas comigo.

Numa troca de meros papeluchos na roda da clausura na abadia de Santa Maria, em São Paulo, veio de minha tia monja, “escreva a biografia de Papai”. Não dei atenção ao caso, faltava-me a escolaridade para tratar de um erudito, autor de 80 volumes. A sugestão foi tocada com a barriga até que um desses tombos existenciais que a vida vai armando me pusesse em condição de ouvir do Pe. Charbonneau, meu ex-professor no colégio: o projeto é o mais importante de sua vida, ademais eis sua escrito terapia. Persiga-o. Não sabendo por onde começar, faça uma lista de contemporâneos do Tristão e entreviste-os, desse material sairão as chaves de leitura.

Pesquisando a obra do velho reencontrei-o com outras roupas e papéis. Numa tarde do final dos anos 1960, por exemplo, ele me levou a Viracopos, o neto suspendera sua matrícula na universidade para embarcar num projeto easyrider na Europa, tudo por conta de uma saia. O “milagre brasileiro” no começo dos anos 1960 supria-me os meios de viver muitos meses sem salário e meus pais atribuíram o estouvamento aos impulsos da mocidade contra o que seria inútil levantar um muro.

Bem umas duas dúzias de parentes acompanharam-me ao aeroporto, os adultos tomados de alguma natural preocupação com rompimento dos trilhos no figurino de ascensão burguesa, eu antegozando o festivo da perspectiva de visitar Paris. Mas o mais sênior da comitiva de despedida olhava sereno e confiante para o rapazola a embarcar. Não importavam as inevitáveis cabeçadas da condição de moço solteiro capaz de se oferecer desatinos, tais experiências no final seriam incorporadas e a direção fundamental da empreitada era construtiva.

Andou o tempo, casei, tivemos quatro meninas, elas espalharam-se pelo mundo, aquelas mais perto de nós ficam dois mil quilômetros mais ao sul. Demoraram a formar sua própria tropa, mas a primogênita foi com o marido alemão bater em Nova Iorque, onde tivemos recentemente a alegria de visitar a jovem que dera luz a outra menina, desta vez com a janela do quarto dando sobre o Central Park.

Pois no Whatsapp está se formando uma galeria de fotos da pequena Josefina, ela ontem deixou a condição de dorminhoca e abriu largo sorriso contagiante. Já nasceu globe-trotter, tendo, a caminho de estabelecer seu berço em São Paulo, vivido metade de seus dias em Manhattan e outra na Alemanha, onde siderou mil atenções europeias.

A bebê promete-nos algo do que veio uma vez numa carta de meu pai referindo-se a meus sobrinhos e sobrinhas nos almoços lá de casa aos domingos: “Eles crescem em graça e beleza”. Por tudo isso começo a concordar com aquilo dito por uma teóloga amiga quando lhe comuniquei o avosado: “ se você já não é bobo, vai ficar!”.

 

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