Gerações

Vó Ni, modo de usar

●   Descobrindo o neto de um ano e meio durante um mês com a vovó

► O dia amanheceu com uma garoa fina, rara nas terras desérticas do lugar. Vó Ni olha o leve acúmulo de água nos verdes felizes e tem de deixar para outro dia o passeio pelo parque, onde brinquedos atrativos e uma volta de trem a vapor fazem o neto gastar a tão necessária energia. O pequeno Hélio, de um ano e meio, estende os braços, quer colo. A avó levanta o pequeno, envolve-o num abraço e o beija. Ele olha para a avó e tenta descobrir o que ela vai fazer, parada assim.

Hélio balança as perninhas, quer algo. Vovó parece não entender. Ele faz força e escorrega para o chão. Mais uma vez, pega o brinquedo de montar e tenta, com as mãos gorduchas, o encaixe perfeito. Vó Ni senta-se no chão ao seu lado e passa a mão nos cabelos fininhos (clarinhos como da mamãe) do ainda bebê. Ela pensa que não sei, mas sei bem que ela está me fazendo um carinho.

Continuo brincando. Tem coisas que eu adoro na Vó Ni: quando ela me ajuda a montar os trilhos do trem. Ou quando ela me oferece um biscoito diferente. Ou brinca de se esconder pra eu achá-la. Ou mesmo quando ela põe um copo na boca e fala umas coisas engraçadas, tipo “atenção, atenção Hélio, comparecer ao portão de número 9″, com uma voz gorda. Ela conversa comigo o tempo todo, tem coisas que entendo, outras ainda preciso entender.

Diálogos com Hélio

Vó Ni está há dias comigo e quando eu falo “mamã”, ela me diz que “mamã” foi cuidar da vovó Bobby, que mora longe. Não sei o que quer dizer morar longe, só sei que papai e mamãe estão com a vovó Bobby.

Tenho saudades da mamãe e do papai. Mas Vó Ni diz que é importante ela estar ao lado da vovó Bobby, junto com papai, e que quando eu crescer vou entender. Nem sei o que é isso de quando eu crescer. Vovó às vezes exagera as palavras ao conversar comigo.

Eu fico muito feliz quando ela vai me buscar na creche, eu a vejo, sorrio e corro em sua direção com meus braços levantados. Ela se derrete, me beija, eu grudo no seu pescoço, não quero ir pro chão de jeito nenhum. Ela me chama de “seu lindo chumbinho”. Fala cada coisa estranha… Um dia vou descobrir o que isso quer dizer.

Dia a dia com  Vó Ni

De manhã, quando acordo, a vovó está ao meu lado e, muito animada, diz “bom dia” e eu sorrio. Ela fala “bom dia” para tudo: para o leite que vou tomar; para o dia, ao abrir a cortina do quarto; para as plantas; e até para meus brinquedos.

 

Eu gosto muito quando ela me põe pra dormir, ela faz um carinho na minha barriga e nos meus pés, me dá um soninho… Eu tento resistir, mas é tão gostoso! Ela canta “bicho papão; boi da cara preta; atirei o pau no gato”… vovó não é politicamente correta. E eu adoro ouvir essas músicas com a cabeça apoiada no seu peito.

Às vezes acho que ela se cansa de cantar e o som do “tum tum” do seu peito me deixa ainda mais relaxado. Enquanto o sono não vem, eu passo a mão no seu rosto, seguro sua mão.

Tem coisas que a vovó não me entende: ela acredita que a comida dela é muito melhor do que aquelas que estou acostumado, que já vêm prontas. Ela já tentou que eu experimentasse arroz com feijão e picadinho. Confesso que da primeira vez gostei, mas depois… Outro dia, fez arroz integral e legumes. Eu não quis nem saber! O macarrão com molho de tomate e um mini hambúrguer de berinjela, eu gostei um pouco, porque achei o nome bonito e desconfio que ela vai repetir. É duro ser cobaia da Vó Ni!

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Um mundo por um banho

Em alguns momentos, vovó realmente não me entende: ela prepara meu banho, eu entro feliz, brinco com os brinquedos, tomo água da banheira. De repente, vovó manda eu dizer tchau tchau pra água e me enrola na toalha. Ah! Eu odeio esse momento, choro, choro, até muitas lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Me sinto totalmente incompreendido. Se estava tão gostoso, por que me tirou?

 

Ela tenta me distrair, mas eu permaneço chorando. E fico mole, para escorregar para qualquer lugar menos para o trocador, onde ela vai colocar a fralda. E continuo chorando, fico vermelho, tento arrancar a toalha. Esperneio mais ainda quando ela quer me vestir. Coisa chata essa tal de fralda.

Enquanto coloca, ela diz que sou parecido com papai, que, com um ano, arrancava a fralda e andava pelado pela casa. Eu estou quase igual ao papai: comecei arrancando sapatos e meias. Ela fala “meu Deus, que parece que estou te batendo”, mas vovó não me entende mesmo, nesse momento.

HD externo de criança

Eu quero conhecer tudo, arquivar minhas experiências nesta memória, ainda tão cheia de espaço. Então, abro qualquer coisa abrível. Tiro e ponho coisas nas gavetas. Abro e fecho todas as portas. Faço carinho num dos gatos, o Salvador. Às vezes, me empolgo e faço um carinho mais exagerado, vovó fala “devagar, Hélio, devagar”.

Temos dois gatos : Tito e Salvador. E eu fico muito bravo quando eles resolvem passear entre meus brinquedos. Eu falo “não, não” ou “meu, meu”. Mas eles não entendem, a vovó precisa interferir.

Quando mexo na impressora ou tento pegar em algo que me fascina. como uma caneta, e rabiscar tudo que vejo pela frente, vovó fala um “não” sério, mas eu finjo que não entendo e continuo. Vovó repete: “não, não!” Ela acha que sou surdo. Não sou, vovó, estou na fase de conhecer coisas, você nunca foi criança?

E quando ela fala o terceiro “não”, vejo que não tem mais jeito. Eu espremo os lábios, faço um barulho que não é choro, abaixo a cabeça, levanto os braços, vou em sua direção e peço colo.

Vovó não resiste, me pega e explica, com voz macia, porque não posso fazer certas coisas. Ela diz que faço jus ao meu nome. Hélio é nome do meu bisavô: ela quer dizer que sou inteligente e determinado, eu acho. Eu encosto a cabeça no seu ombro, começo a chupar o dedo e nós dois esquecemos da nossa briga.

 

A vovó nunca nega o colo quando peço. Ela me entende quando quero ver o meu desenho predileto: eu pego o controle da tv e ela já sabe.

 

Enquanto o desenho passa, eu gosto de sentar ao seu lado, bem juntinho, segurar e até torcer seu dedo mindinho. Ela vai me contando o desenho. Quando acaba eu escorrego do sofá e vou brincar. Vovó põe uma música que eu adoro: “Lava a Mão”, da Galinha Pintadinha.

Enquanto ouço, eu esfrego minhas mãos como no desenho. Vovó ri, um riso assim grandão. É muito fácil conviver com a vovó.

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Ivani Rossi

Avó de Isabel, Felipe, Hélio e Gabriella; é autora do livro infantil “O gato que queria ser peixe”, inspirado em uma história contada para os netos, que será lançado na Flipoços 2020

3 Comentários

  1. Adorei o texto! Narrado sob o ponto de vista do neto, contando o dia a dia com a avó. Nem sempre olhamos o outro lado e ali podemos imaginar e treinar nosso cérebro para enxergar o outro, como pensa e os motivos das inúmeras reações.

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