A menina na janela do Candomblé
● Sem velas nem escuridão, mas algo que ela intuía como divino

► Ela cresceu em Salvador, no início dos anos 1960, numa casa de atmosfera agradável e simples. Havia santos de devoção sobre os móveis, rezas leves no entardecer e um anjo da guarda na cabeceira da cama. A mãe era católica e devota de Santo Antônio, dessas que acendiam vela e faziam promessa em silêncio. Candomblé
O pai, ao contrário, era ateu – um homem de ideias firmes, intelectual e comunista. A menina vivia entre esses dois mundos: de laço no cabelo e vestidos bordados, aprendendo a se equilibrar entre a fé da mãe e o pensamento livre do pai.
Com pais tão diferentes e movida por uma curiosidade que parecia não ter limites, a menina começou a escutar os sons que vinham das ruas vizinhas. Eram tambores e palmas que pareciam chamar por ela.
Logo descobriu que, perto de casa, havia um terreiro de candomblé – a casa da lendária Mãe Olga do Alaketu, uma das grandes iyalorixás da Bahia, conhecida por sua sabedoria, sua dignidade e por acolher com generosidade quem buscava o sagrado.
Mesmo sendo cuidada e vigiada com atenção, a menina encontrava um jeito de escapar. Para chegar até o terreiro, bastava atravessar a rua de sua casa e seguir por caminhos de chão batido, sem calçamento, que se abriam entre quintais
Ao final da caminhada, surgia a casa ampla, com muitas janelas e teto alto, de onde vinham o som dos atabaques. Ela se aproximava com respeito, ficava imóvel diante de uma das janelas, observando, silenciosa e encantada, o que acontecia lá dentro.
Mulheres e homens vestidos de branco
O que via a deixava em suspenso: mulheres vestidas de branco, rodando suas saias como se dançassem com o vento, colares coloridos cruzando o peito, movimentos firmes e serenos.
O ar era leve, cheio de música, e havia uma harmonia que a menina não conhecia em nenhum outro lugar. Não havia velas nem escuridão – apenas o brilho do branco, o som ritmado dos tambores e a vibração de algo que ela intuía como divino.
Jamais ousou entrar. Ficava na janela, protegida por uma mistura de medo e fascínio. Era como se estivesse guardada por duas forças: os Ibejis, orixás-crianças, e o seu anjo da guarda – ambos velando por aquela curiosa observadora de um mundo que a encantava sem explicação.
Anos depois, já adulta, ela ainda lembraria o som dos atabaques que embalavam suas descobertas de menina. Lembraria das janelas abertas, do branco das roupas, da serenidade dos gestos e da emoção silenciosa que sentia ao observar o sagrado que vivia fora dos livros e das missas.
O terreiro continua vivo e respeitado, guardando sua história e a força ancestral de Mãe Olga do Alaketu.
E dentro dela, permanece a lembrança daquela menina de vestido bordado e alma curiosa, que aprendeu pela janela que a fé pode ter muitas formas – e que todas elas falam a língua do coração.
Imagem: Divulgação
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