Primeira sessão de terapia familiar
● Palavra de especialista: 3º episódio da série Cléo e a comida
► Faz parte do meu trabalho atender pessoas e famílias em momentos muito difíceis de suas vidas. Não foi diferente com Cléo e sua família. Terapia
Enquanto o pai olha pela janela do consultório e Cléo fixa o olhar em seus sapatos, a mãe me relata as mudanças ocorridas na vida doméstica nos últimos meses e como a família está funcionando no momento.
Então, Cléo vai ficando brava com sua mãe.
– Eu deveria ter o direito de escolher o que comer e não comer! Minha vida não é da conta de ninguém – diz ela.
A mãe começa a chorar e diz que Cléo não costumava falar dessa maneira. O pai ressalva que concorda em tese com o que Cléo está dizendo, mas que está preocupado com a quantidade de peso que ela perdeu.
– Ela deveria saber a hora de parar com a dieta, mas é tão teimosa. E aqui estamos nós, muito além do razoável – afirma ele.
Cléo me conta, então, sobre os episódios de raiva do pai na hora das refeições e como eles tornam tudo insuportável:
– Provavelmente, os vizinhos podem ouvi-lo gritando e me ameaçando.
Ao que ele responde:
– Por que ela não pode comer como uma pessoa normal?
Enquanto isso, a mãe continua chorando e balançando a cabeça.
É claro que os três discordam, mas se sentem igualmente sem saída. A mãe pondera que não é culpa de Cléo, que há algo errado com a jovem e, por isso, gritar não vai resolver nada.
Ela acredita que comprar os tipos de alimentos que Cléo se sente segura de comer é a melhor solução, pois pelo menos a filha está comendo. Mas também entende que essa não é uma solução de longo prazo, até porque se sente um pouco manipulada por Cléo.
Cléo, então, suspira.
Problema pode se perpetuar Terapia
Eu gostaria de fazer uma pausa para discutir o cenário acima. Esta é uma primeira sessão bastante comum. Cléo não quer estar ali (porque, para ela, não há problema).
A mãe e o pai estão polarizados: enquanto um explode de raiva (como um rinoceronte), o outro não consegue ser assertivo e estabelecer limites (como um canguru) – essas são reações comuns ao sentimento extremo de impotência.
Eu, como terapeuta, vejo como tal dinâmica pode perpetuar a situação sem realmente resolver nada, e meu objetivo é justamente ajudá-los a ver a questão por essa ótica.
No início do tratamento, o jovem frequentemente nega os problemas do seu relacionamento com a comida. Ele ainda vê isso como uma opção, uma solução de que não está disposto a abrir mão.
Os pais, por outro lado, estão geralmente desesperados para que o problema desapareça e usando os recursos de que dispõem para tentar resolvê-lo.
Atinar para a dinâmica resultante dessa situação é fundamental para compreender o papel da família no processo de recuperação de transtornos alimentares.
Sentimento de culpa Terapia
Os protocolos atuais defendem o envolvimento da família no tratamento de transtornos alimentares e, de fato, ela pode ser um recurso incrível na recuperação do paciente. O apoio da família significa uma diminuição considerável no número de internações dos pacientes.
Meu trabalho, porém, vai muito além de ajudar os familiares a entender o problema e seu papel na solução. É preciso fazê-los compreender que muitos dos aspectos do apoio à recuperação de seu filho parecem ir contra a forma como costumamos cuidar de nossos filhos mas são fundamentais para o tratamento.
Um dos meus objetivos iniciais é tentar afastar da família as ideias sobre culpa. Cada pai está fazendo o melhor que pode com o que tem. E você pergunta: o que eles têm?
Eles têm um adolescente que se recusa a comer, geralmente de mau humor e bastante deprimido. Têm um filho que está claramente sofrendo com algo muito misterioso. E divergências sobre como lidar com a situação. Têm ainda uma quantidade infinita de preocupação e ansiedade.
Mas eles não têm o entendimento do que está acontecendo.
A recuperação de um transtorno alimentar é a coisa mais difícil que alguém terá de fazer na vida. Para começar, ele nem mesmo reconhece que existe um problema. Como você lidaria com tudo isso?
Refeições regulares Terapia
O tratamento começa com o restabelecimento de refeições regulares, para ajudar a nutrir o corpo e, se for o caso, a restaurar o peso. Quando nosso corpo está no modo “desligado” e não há energia suficiente entrando em nosso cérebro, qualquer trabalho terapêutico é prejudicado.
– Ok, deixe-me ver se entendi direito. Quer dizer que temos de fazer Cléo comer mesmo que ela se recuse terminantemente? – perguntam os pais.
E questionam ainda mais:
– Você não pode dar a ela uma terapia individual para fazê-la recobrar os sentidos e começar a comer? E não podemos alimentá-la à força?
Sim, é isso mesmo. Mas tem mais. Ao fazer isso, a família removerá a principal (provavelmente a única) estratégia de Cléo para enfrentar emoções. Então, seus pensamentos e sentimentos difíceis virão à tona e se tornarão muito mais intensos.
Interessado em saber como os pais de Cléo começam a ajudá-la em sua jornada para a recuperação? Aguarde o último capítulo…
* Cléo é um personagem fictício baseado nas muitas histórias que ouvi de muitos jovens e suas famílias sobre as experiências deles.
** Para mais informações sobre sintomas e critérios de diagnóstico, consulte: http://www.ambulim.org.br/
Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois. Então. Pois.
E mais…
Veja também no portal avosidade: