Comportamento

Só você pode fazer isso

● Palavra de especialista: 4º episódio da série ‘Cléo e a comida’

Neste último capítulo a autora foca o papel da família: o portador de distúrbio alimentar não pode resolver sozinho

Nos três episódios anteriores, contei a história de Cleo, a adolescente que desenvolveu um transtorno alimentar. No primeiro, abordei como e por que o distúrbio surgiu e se agravou.

No segundo, mostrei como ele alterou as relações parentais e a dinâmica doméstica, transformando toda a família em refém. O terceiro enfocou a linha de tratamento adotada a partir do momento em que a jovem e seus pais chegaram ao meu consultório em busca de ajuda especializada.

Neste último capítulo, o foco é o papel essencial da família – e principalmente dos pais – na jornada de recuperação de um portador de distúrbio alimentar. O processo envolve três aspectos fundamentais: a nutrição, a desvinculação de alimentos e sentimentos e o dilema entre engrandecer a vida ou sustentar uma doença que a encolhe.

Passos da recuperação

Um transtorno alimentar é uma doença mental grave que, a cada dia que passa sem ser desafiada, vai ficando mais entrincheirada nos pensamentos, sentimentos e comportamentos da pessoa. Assim, lutar contra o distúrbio exigirá cada gota de paciência e perseverança que o paciente e seus pais puderem encontrar dentro de si.

No fundo, como mostra o caso de Cleo, o transtorno é uma solução que se torna um problema, uma amizade tóxica em que o objetivo da aceitação nunca será alcançado porque a jovem jamais será boa o suficiente.

Por isso, é indispensável que o paciente e sua família adquiram um melhor entendimento sobre a doença e seus impactos físicos e emocionais. Este é o primeiro passo da recuperação.

Outro passo importante é separar a pessoa do problema. Cleo não era o problema; o problema era o problema. Pode parecer um detalhe semântico, mas faz uma grande diferença quando usamos palavras como luta e batalha Cleo não podia lutar contra si mesma, mas podia lutar contra o distúrbio.

Tendo trabalhado por tantos anos nesse campo, eu conseguia diferenciar as conversas em que Cleo estava presente de outras em que era o transtorno alimentar que estava falando – e ele nunca diz nada original, apenas repete constantemente a enorme preocupação com ingredientes, números da balança e das calorias das embalagens.

Administrando emoções

Claro, os pais de Cleo ainda precisavam de prática pra distinguir com quem eles estavam falando e, a partir daí, conseguirem evitar dar corda para os medos e pensamentos vindos do distúrbio, o que consequentemente, deixaria o transtorno alimentar mais forte.

Eles chegarão lá, especialmente porque durantes as sessões eu falo sobre o transtorno alimentar, e não com ele.

Os contratempos e a ambivalência fazem parte do processo e trazem muito aprendizado, ainda que seja difícil para os pais assistir à jornada. Pais são programados para resolver os problemas dos filhos.

Ouvi muitas vezes os pais dizerem que, se pudessem, comeriam por seus filhos para que eles se recuperassem. Só que eles não podem. O máximo que os pais podem fazer é nadar ao lado dos filhos, ajudá-los a boiar e a não se afogar enquanto eles lutam a batalha mais difícil de suas vidas.

É muito importante que os pais saibam administrar e regular suas próprias emoções para poderem oferecer apoio aos filhos.

Mas a recuperação depende do próprio paciente, que muitas vezes tentará neutralizar esse apoio, resistindo e se negando a colaborar – como fazia Cleo, uma jovem que estava entrando em contato pela primeira vez com a complexidade de suas emoções, seus relacionamentos, suas mudanças de humor e seu corpo.

Cuidando da nutrição

Os distúrbios alimentares estão fortemente entrelaçados com emoções e sentimentos difíceis. Por isso, especialmente no início do tratamento, os pais de Cleo se sentiram confusos e culpados quando recomendei uma abordagem baseada na família.

Em razão de sua desnutrição e da negação do problema, Cleo não tinha a necessária disposição mental para se comprometer com uma terapia individual. Primeiro, ela precisava comer. E, sem apoio e supervisão, não conseguiria fazer isso.

Os estudos mostram que, em casos de transtorno alimentar do tipo restritivo, ganhar peso no início do tratamento está relacionado a melhores prognósticos. Por esse motivo, a parte inicial do tratamento geralmente envolve o recrutamento dos pais.

Eles é que serão responsáveis por preparar e servir as refeições – e isso envolve decidir o tamanho das porções.

Para os pais de Cleo, significava muito que eu, uma profissional especializada, confiasse na habilidade deles de alimentar sua filha, algo que, como milhões de outros pais, fizeram com sucesso por muitos anos, mas que agora virara uma tarefa em que se sentiam inseguros e inadequados.

Além de preparar e servir a comida, o antes e o depois das refeições também requerem apoio e supervisão. É importante que as formas de oferecer apoio sejam conversadas e decididas fora do horário das refeições.

O auge do medo e da ansiedade de portadores de transtornos alimentares, como Cleo, costuma acontecer antes das refeições. E, depois de comer, eles ficam com sentimento de culpa – a sensação física de saciedade tem uma conotação negativa, de gula.

Desembaraçando

Você já considerou como, indiretamente, você ensinou seus filhos a expressar e lidar com emoções? Como demonstrou tristeza e vulnerabilidade? Ou, talvez, você culpasse os outros às vezes pela forma como se sentia?

Será que, em sua casa, revelar sentimentos era coisa de gente fraca? Quem sabe fosse possível manifestar raiva, explodir em fúria, mas chorar, apenas na privacidade do quarto?

Como os pais gerenciam suas próprias emoções é uma das peças do quebra-cabeças, porque um distúrbio alimentar pode ser uma estratégia evasiva: quanto mais Cleo pensa sobre comida, menos ela pensa sobre suas emoções.

Não é a única peça, claro. Outra, importante também, é o fato de vivermos em uma sociedade que tenta enterrar qualquer cheiro de negatividade, invalidando assim emoções genuínas

Não é por acaso que o tratamento de muitas doenças mentais envolva a construção de uma relação mais saudável com o sentir. Sentar com as nossas emoções é uma frase que uso quase todos os dias em meu trabalho como terapeuta.

Ela significa reconhecer o que estamos sentindo, nomear o sentimento e tolerá-lo. Significa não usar estratégias para evitar nossos sentimentos só porque eles são desconfortáveis, e sim ter curiosidade sobre o que essa emoção está nos dizendo a respeito do que é importante para nós.

Engrandecendo a vida

Assim como a depressão e a ansiedade, transtornos alimentares tendem a tornar cada vez menor a zona de conforto de seus portadores De forma indireta, o transtorno alimentar oferecia a Cleo uma bolha em que ela se protegia dos estresses da vida real. Cleo havia parado de sair de casa, pois o mundo era muito imprevisível.

Ela também perdeu viagens escolares, festas e outros eventos sociais porque não conseguia se alimentar adequadamente sozinha.

Por um bom tempo durante o tratamento, Cleo só comia na presença da mãe – o que significa que a mãe ia à escola na hora do almoço e elas se sentavam numa sala separada (em Londres, as aulas são em período integral).

Quando o peso de Cleo começou a se estabilizar e o risco físico diminuiu, pudemos começar a pensar em ampliar essa bolha de proteção.

Poder falar sobre a ambivalência entre viver uma vida pequena e controlada e uma vida mais ampla e plena é um grande passo. Normalmente, os pais tendem a concentrar a conversa em tudo o que a criança está perdendo, negando-se a reconhecer que existem aspectos positivos na zona de conforto do distúrbio alimentar.

No entanto, isso fará com que o jovem resista ainda mais a se abrir com os pais. Mais do que o pedaço de frango que foi deixado intocado no prato, os pais de Cleo precisaram entender o papel de proteção e evasão do transtorno alimentar para poder apoiar a filha na compreensão de seus desafios

Comunicação é aliada

Na maioria das vezes, uma comunicação aberta é a melhor ferramenta que os pais podem ter nesse processo. Compreender a ambivalência inerente à mudança e estar abertos para ouvir os prós e os contras de ter um transtorno alimentar pode ser muito mais útil do que levar a conversa em uma direção específica.

Cleo já completou boa parte de sua jornada de recuperação. Agora, ela quer uma vida mais ampla, quer cursar uma universidade e trabalhar com animais.

Mas ainda há muito chão pela frente. Haverá dias bons e ruins, tentativas bem e mal sucedidas, e é importante que seus pais a encorajem e garantam que isso será ultrapassado, sem minimizar o quão opressor e difícil está sendo o processo para a jovem.

A capacidade dos pais de ouvir pode ser mais valiosa do que a necessidade de falar sobre o que é certo e errado. Deixar que partam do jovem os argumentos para a mudança, para que essas razões estejam em sintonia com os seus próprios valores e com o futuro que desejam para si, é o melhor caminho.

Você tem mais perguntas sobre transtornos alimentares e como apoiar seu ente querido?

Você está lutando contra um transtorno alimentar e gostaria de receber apoio para superá-lo?

No Brasil, você pode recorrer ao Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – ambulim.org.br.

Cléo é um personagem fictício baseado nas muitas histórias que ouvi de muitos jovens e suas famílias sobre as experiências deles.

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Violeta Gaddum

Psicóloga e terapeuta de família com pós-graduação na PUC-SP e mestrado no King’s College; nos últimos 10 anos, trabalhou em Londres no serviço especializado em transtornos alimentares do sistema público de saúde do Reino Unido (NHS); atualmente, mora na Nova Zelândia e atende indivíduos, casais e famílias presencialmente e online - www.violetagaddum.com - violeta.gaddum@gmail.com

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