Gerações

Triste Tita

● Homenagem à tia-avó feia, mal-humorada, só sorrindo no fim

Passou sua vida longeva sempre cuidando da mãe, irmãos, cunhada, filhos e netos do irmão, em uma faina sem fim

O Brasil ainda era uma monarquia escravocrata quando Tita nasceu em Santo Amaro da Purificação, cidade do Recôncavo Baiano, no ano da graça de 1879.

Se chamava Alzira, era minha tia-avó e a segunda filha de um imigrante português com uma “moça da terra”.

Era a filha mais velha, das mulheres, e por isso, como era habitual na época, coube a ela a labuta doméstica desde a infância.

Vieram depois dela irmãos e irmãs mais novos e sempre havia muito serviço por fazer na casa.

Mas o mais importante é o detalhe a seguir: nasceu feia. Feia de dar dó.

E assim cresceu, sem nenhum encanto, em uma época em que a beleza contava muito para definir o destino das mulheres: o casamento.

A sorte lhe foi madrasta – como se costuma dizer, atribuindo às madrastas todos os males.

Sua personalidade se assemelhava, com a devida licença do autor, à personagem Juliana, do romance ‘Primo Basílio’, de Eça de Queiroz.

Era mal-humorada, carrancuda e pouco afeita a conversas.

Pra piorar a situação, suas irmãs Pombinha (Maria Plínia) e Bela (Maria Isabel) eram bonitas.

Pombinha não chegou a se casar porque teve câncer ainda muito jovem e isso lhe abreviou a vida.

Bela casou e teve filhos.

Os irmãos também foram se casando e formando suas famílias.

E, assim, Tita ficou para titia – e aqui no pior sentido da expressão.

Ficou órfã de pai ainda muito jovem e passou a viver às expensas dos irmãos.

Enquanto sua mãe viveu, Tita só fazia uma coisa na vida: servir à mãe e ao irmão mais velho.

Com a morte dos dois, passou a integrar do núcleo familiar de outro irmão, Pedro, meu avô.

Serviu a essa família por toda a vida.

Descuidada e aborrecida

Mas não demorou muito para mais infortúnios chegarem em grandes proporções.

A começar pela morte do meu avô Pedro.

Tita passou a cuidar da cunhada, minha avó, sempre doente. E dos filhos dela – meu pai era um deles.

Assim seguiu, depois cuidando também dos netos do irmão, em uma faina sem fim até que as suas forças se exaurissem.

Com a sucessão das gerações, passou a viver mantida pelo marido da sobrinha.

Como sempre, casa e comida em troca dos serviços domésticos.

Convivi com Tita por alguns anos, principalmente na minha adolescência.

Nunca sorria, conversava pouquíssimo, mas, segundo relatos de pessoas da família, às vezes gostava de fazer intrigas.

Sua aparência era descuidada. E dava a impressão de estar sempre muito aborrecida com alguma coisa.

Minha tia-avó Tita é o retrato típico da sociedade brasileira no século XIX e grande parte do século XX.

Não existia vida digna para as mulheres fora do casamento ou dos conventos.

A falta de beleza e atributos lhe roubou a vida e o direito de ser feliz.

Acredito que ninguém tenha lhe perguntado o que gostaria de fazer na vida. Não existia essa possiblidade.

Seu pai, irmãos e irmã tiveram vidas breves, mas Tita viveu muito. Chegou aos 96 anos.

Quando já não podia mais servir à sobrinha e ao marido da sobrinha, foi viver em um asilo para pessoas pobres.

Minha mãe e eu fomos visitá-la algumas vezes.

Mas, curiosamente, naquele local ela era igual a todos que ali moravam e parecia feliz.

Já bem velhinha e sem obrigação de trabalhar, às vezes ela esboçava um sorriso.

Finalmente estava em paz.

Longe da família e da labuta diária, encontrou a dignidade antes da partida.

Imagem: ‘Cabeça de uma mulher velha’, óleo de Percy Bigland (1890)

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Elisabete Junqueira

Publicitária e jornalista, fundadora e editora do portal avosidade, avó de Mateus, Sofia, Rafael, Natalia, Andrew, Thomas e Cecilia Marie

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