Gerações

Saudades do Suarão – as viagens

● Primeiro capítulo de uma série de memórias de infância

Nas manhãs de domingo, irmãos e primos iam à estação do Suarão comprar o jornal e provocar os viajantes desavisados

A locomotiva apita e começa a avançar. Na plataforma da estação – só umas dezenas de metros, pois a composição é curta –, os meninos, braço esticado, mão espalmada bem junto ao trem, aguardam uma cabeça espiar pela janela algum vagão. As viagens.

Leva um tapa. Estica-se para ver quem fez, outro tapa. Um terceiro pestinha adiante está pronto para outro, se rolar. E segue a viagem.

Os cinéfilos mais velhos hão de relembrar a cena inesquecível do impagável “Meus Caros Amigos”, de Mario Monicelli (1975), em que os personagens, senhores de meia idade, em fila numa estação, estapeiam passageiros de um trem de partida.

Nas manhãs de domingo, irmãos e primos iam à estação do Suarão comprar, no trem, o Estadão do Papai e dar na cara de viajantes desavisados. Era a década de 1950 e eles tinham entre 12 e 15 anos.

(O chefe da estação avisou meus pais e a brincadeira acabou. Meu pai ria de chorar ao contar.)

Eu era pequeno. Nunca teria essa audácia.

Até cobra jararaca

Nos meados dos anos 1950 o Suarão era longe.

De carro era a Via Anchieta até Santos, depois São Vicente e o Boqueirão da Praia Grande via Ponte Pênsil. Dali eram quase 40 quilômetros de areia compacta.

A praia era pontilhada de tocos e cortada por cursos d’água, vários volumosos; uns escavavam barrancos difíceis de distinguir na areia cinzenta.

A travessia do único rio de porte do trajeto, o Mongaguá, era pela ponte do trem.

Consultar a tábua das marés era obrigatório – esse trecho, só na vazante. De São Paulo eram 5 horas de viagem no mínimo.

O sal carcomia a carroceria. Para atravessar certos riachos o motorista entrava na marezinha, onde a água doce se espalhava e o leito era mais raso.

Exigia perícia por causa de ondas, buracos e areia mole; se encalhasse e não fosse acudido a tempo o carro era tragado. O Papai era bom motorista, nunca aconteceu nada.

Tínhamos o Mercury 1949 bordô placa 11-73, São Paulo. A grade da frente, de um farol ao outro, perto do para-choque, lembrava a fisionomia de um prognata sorridente. Eu gostava dele.

Por causa do sal, ele só ia para o Suarão no começo e no fim da temporada (de dezembro ao início de março no verão, julho no inverno).

Descia carregado: o Papai na direção, eu no colo da Mamãe, meus quatro irmãos, e no porta-malas basicamente roupas e lataria.

Antes de descarregar a casa era inspecionada – consta que uma vez tinha uma cobra jararaca no banheiro.

Na temporada propriamente o Papai ia de trem nos fins de semana. Ficávamos a pé no meio de coisa nenhuma.

Na hora de ir embora o Papai vinha de carro e voltávamos com ele.

Os carros da família

O Mercury enferrujou e a funilaria foi refeita. Foi vendido em 1960, 1961. Sucedeu-o uma Kombi cinza e branca made in Brazil, uma das pioneiras.

Foi nela que aprendi a dirigir, com 8 ou 9 anos: colocavam almofadas atrás para eu alcançar os pedais e lá ia eu, todo importante, comprar cerveja e guaraná num dos bares perto da estação (um adulto sempre me acompanhava).

Depois da Kombi veio uma sequência de Fuscas e até um Gordini bordô – fora da curva (literalmente: meu irmão Martim capotou com ele numa curva em São Paulo; machucou pouco).

Vieram duas Variants em seguida e aí perdi a conta. Desde o primeiro Fusca eu era veterano no Suarão.

No tempo da Kombi a Rodovia Manoel da Nóbrega já estava aberta e, com disposição para encarar a viagem, era possível passar fins de semana no Suarão. Foi um upgrade decisivo. Sem engarrafamento na Via Anchieta dava umas 3 horas.

Era divertido porque saíamos de São Paulo já cantando – o Martim, minha irmã Dalmácia, nosso primo João Antônio, eu. O repertório era Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, Ataulfo Alves, Aracy de Almeida, Francisco Alves, Elizeth Cardoso, Nora Ney, Dolores Duran.

Eu sabia de cor todas as letras. Fiz um CD com 26 das canções de que me lembro da trilha sonora das idas para o Suarão. A volta era cansativa, não tinha cantoria. Às vezes eu voltava no domingo à noite com meu primo José.

Ele gostava de ouvir na viagem o programa de música lírica da Rádio Eldorado. Primeiro achei esquisito, depois passei a curtir.

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Bias Arrudão

Jornalista

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