Gerações

Saudades do Suarão – trem e praia

● Segundo capítulo de uma série de memórias de infância

O nome da praia vem do tupi e significa “lugar onde o bicho grande ronca”, mas o autor nunca viu nenhum bicho

Pela Sorocabana eram bem umas 5 horas. O trem partia da Estação Júlio Prestes, a da Sala São Paulo. Descia a Serra do Mar beeeem devagar. Em Samaritá, no pé da serra, onde encontrava a Santos-Juquiá, os vagões eram engatados, aos trancos, numa composição que vinha de Santos.

Dali a ferrovia seguia alguns quilômetros até quase a praia. E passava a acompanhá-la, a 400 metros do mar, até Peruíbe, de onde se dirigia para o interior e terminava em Juquiá, já no Vale do Ribeira.

Cortava a mata densa que cobria a planície do pé da serra às dunas da costa. Uma opção era ir a Santos (havia ônibus, lotação e a Santos-Jundiaí) e lá (mas em outra estação. Muito cômodo) tomar o trem para Juquiá.

Pesquisei: Quem construiu a Santos-Juquiá foi a Southern San Paulo Railway, inglesa. Começou a operar até Itanhaém em janeiro de 1914. Foi o primeiro – e, por décadas, o único – meio de transporte moderno na região.

A ponte sobre o Rio Itanhaém deu acesso a Peruíbe e permitiu o escoamento da produção de bananas, a única atividade econômica de relevo do então quase intocado litoral sul de São Paulo.

Em 1926 foi incorporada à Sorocabana. A ligação com São Paulo ficou pronta em 1937. Nos anos 1940 e 1950 circulou entre a Capital e Peruíbe o Expresso Ouro Branco, de luxo (viajei nele mais de uma vez com a Titiá, a tia dos programas legais).

Lugar onde o bicho ronca

No início dos anos 1960 chegou a haver sete viagens por dia entre Santos e Juquiá. Poucos vagões, mas sete horários! Os trens de passageiros deixaram de circular em 1997. Os de carga pararam em 2003. Há muitos trechos sem trilhos.

Em 1961 abriu a Rodovia Padre Manoel da Nóbrega (ele esteve naquelas bandas) e o Suarão ficou perto. Foi quando começou a devastação da Praia Grande. Vinte anos depois ela estava irreconhecível.

O Suarão surgiu em torno da estação, no Km 54 da ferrovia a partir de Santos. Diz o site da Prefeitura de Itanhaém que o nome viria do tupi çuu, animais de grande porte – catetos (porcos do mato) teriam sido abundantes na região (nunca soube de nenhum) –, mais o radical aron, “ronco”, “rugido”.

Trem

Portanto, Suarão significaria “lugar onde o bicho grande ronca” ou algo assim. Pode ser, tupi pra mim é grego. A versão bem-humorada é que é se refere ao calor. Já eu acho que pode vir de um caiçara pioneiro muito alto chamado Soares, o Soarão. Tipo eu, Arrudão.

Suarão era a penúltima estação antes de Itanhaém, 3 quilômetros adiante. Entre elas ficava a de Nova Itanhaém, uma armação com teto de zinco que nem paredes tinha. A do Suarão era um prédio simples creme em cima, marrom até um metro de altura, a três quadras da praia; dava as costas para o mar.

Até a plataforma eram alguns degraus. Tinha bancos de madeira encostados na parede. O guichê estava sempre fechado; os bilhetes eram adquiridos no escritório, cuja porta abria um tempo antes da chegada do trem seguinte.

A vapor x a diesel

Ali ficava o telégrafo, a conexão com o mundo numa emergência. (Certa vez meus irmãos Luiz Antônio e Martim me disseram que para eles eu não existia, pois o telegrama do Papai avisando-os de que eu tinha nascido nunca chegou ao Suarão. Como assim, eu não existo???) A estação deve estar em ruínas.

A caixa d’água que reabastecia as locomotivas a vapor ficava uns metros adiante da plataforma, direção Itanhaém. As longas mangueiras que pendiam dela apodreceram por anos. Perdeu a serventia no fim dos anos 1950; a esta altura deve ter desabado.

Lembro vagamente de marias-fumaça em serviço. Ia à estação com a Mamãe esperar o trem do Papai. Davam medo, faziam barulhos ameaçadores, eram quentes demais, expeliam vapores. Logo vieram as locomotivas a diesel, verdes, glamour zero. Circularam até o fim.

Ir de trem a Itanhaém era um programa. Houve uma ida para comprar tamancos na loja do fabricante. Vagões e bancos de madeira, lustres floreados, muito simples. Dava para passar para o outro vagão pelo engate. Era uma reta no plano, a única curva era quase entrando em Itanhaém.

Parada para constar em Nova Itanhaém, onde quase nunca alguém embarcava ou desembarcava. Não devia chegar a 30 km/h. O embarque era aflitivo: e se o trem saísse antes de todos estarem a bordo?

E se só eu embarcasse e nunca mais fosse encontrado? Uma vez a salvo no trem com os demais eu relaxava. A viagem durava minutos, os vagões sacolejavam, a locomotiva apitava, a paisagem passava na janela. Exceto pela tensão do embarque era divertido.

Ruas de areia paralelas

Carro não carecia, a Mamãe não sabia dirigir. E ir para onde? Lembro-me do “centro” ser a estação e duas vendinhas modestas com fósforos, velas, querosene e pinga de frente para a linha do trem.

O Suarão era uma grade de ruas de areia paralelas e perpendiculares à praia, algumas impassáveis por causa do areião, e raras casas de veraneio, bem simples, praticamente dentro da mata.

Das costas da estação sai a Avenida Suarão, mais larga que as outras ruas do Suarão. No encontro com a praia, lado de Santos, ficava a colônia de férias do então Banco Mercantil de São Paulo, três ou quatro prédios baixos de tijolo avermelhado e telhado verde, de estilo vagamente europeu.

É alguns anos posterior à nossa casa, mas para mim sempre esteve lá. Era um dos marcos do Suarão. Com a rodovia o “centro” passou para o outro lado dos trilhos, cresceu e virou centro.

O estímulo para a mudança foi a construção de um prédio de quatro ou cinco andares muito feio, uma espécie de colônia de férias do Círculo Operário Ipiranga, coisa de um padre romeno, padre Balint, ou Balim.

Torre que se vê de longe

Perto foi construída a igreja mais ou menos neoclássica, branca, com só uma torre, alta, avistada da estrada a quilômetros, e anjos tocando trombeta na base, um exagero para um povoado como o Suarão da época. (Uma das minhas brincadeiras com o Papai era ver a torre primeiro.

Eu ganhava sempre, mas era honesto: só dizia que via quando via.) Depois abriu o Cine Suarão, grande, desconfortável (poltronas de madeira, tipo cadeiras de escola), filmes ruins; deve ser templo evangélico. Com o tempo vieram bares, padarias, mercadinhos, farmácia, enfim, serviços de bairro. A igreja é outro marco do Suarão.

Já Itanhaém era lindinha, um vilarejo modesto de ruas de areia e casas pequenas, algumas do tempo da Colônia. Muitas tinham mato no telhado, aquilo era bizarro. Era bem pobre.

É uma das povoações mais antigas do Brasil: foi fundada por Martim Afonso de Souza em 1532, mas o herói local é Anchieta. Até os anos 1950 as poucas ruas irradiavam da Matriz de Sant’Anna, dos séculos 17 e 18. Feita de pedra e óleo de baleia, é singela, linda e, felizmente, foi restaurada e é conservada.

Em frente, na praça, há o casarão colonial cujo andar térreo foi a cadeia pública e o 1º andar a Câmara Municipal. Não me lembro de ela ser cadeia quando era pequeno; na minha lembrança ali era o Fórum, mas não achei referência.

Cama de Anchieta

Bem perto começa a rampa de pedra do Morro do Itaguaçu, no topo do qual fica o Convento Nossa Senhora da Conceição, do século 17, marco da cidade. A linha do trem passa por baixo dela, sob um arco.

A vista é bonita: na minha infância, do lado de cá havia Itanhaém, o mar, o rio e os morros da outra margem; do lado de lá era floresta até o paredão da Serra do Mar. Parte do convento está em ruínas.

O limite da cidade era o Rio Itanhaém, de águas escuras, mas transparentes. Vem da encosta da Serra do Mar. Na última curva antes do mar havia um pequeno porto, embaixo da ponte da ferrovia.

Era de madeira escura e alta, teria talvez 20m de altura (meu primo José certa vez esperou o trem se aproximar, gritou e se jogou no rio. Parece que deu confusão). Na outra margem era mato. Mais perto da barra havia canoas para atravessar pescadores e aventureiros. É o limite sul da Praia Grande.

Há um morro na margem direita e a foz é voltada para Santos. As outras praias ficam atrás do morro: Prainha, Praia do Sonho (que para o Papai era Praia do Meio) e Praia de Peruíbe, que vai até Peruíbe, 25 quilômetros ao sul, outra Praia Grande. Todas de areia dura.

No costão da Praia do Sonho tem a Cama de Anchieta, outro must de Itanhaém. Titiá e eu fizemos piquenique nela.

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Bias Arrudão

Jornalista

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